A
democracia neste cemitério chamado Brasil já está em pleno desmanche
Uns
dizem que o presidente da República é tão despreparado, tão destrambelhado, tão
desmiolado e tão desqualificado que não consegue organizar nem mesmo uma
quartelada. Dizem que, por aqui, não virá golpe de Estado nenhum. Chance zero.
Despreocupados, até reconhecem que o Palácio do Planalto nutre seus delírios
com rupturas institucionais, mas desprezam categoricamente a hipótese.
Asseguram que não há competência instalada para tanto. Quem planejaria um
golpe?, perguntam. Quem montaria a estratégia? O Pazuello? Dão risada.
Aparentando segurança e calma, estão certos de que as instituições resistirão
até 2022 e o presidente, esse tal que segue no posto, será derrotado nas urnas.
Falar em impeachment agora é perda de tempo, desperdício de energia.
Esses
uns não são poucos. Gente graúda da oposição está com eles. Esses uns, na
verdade, são uns e outros. Dão as cartas. Não há muito que se possa fazer. Só
nos resta torcer para que uns e outros estejam certos. Tomara que o avião
aguente. No mais, ainda é possível bater panelas, além de levantar o dedo e
balbuciar “veja bem”. É disso que trata este artigo: veja bem.
Talvez seja verdade que não virá nenhum golpe de arromba por aí. Oxalá seja verdade. Talvez não nos espere, no calendário próximo, um golpe desses que se deixam fotografar, com tanques de guerra fechando a Rua da Consolação e caças dando rasante na capital federal. Por outro lado, veja bem, é ainda mais verdade que vem vindo, já faz um tempo, um golpe menos espetaculoso, um golpe em processo, um golpe por antecipação, um golpe de cada dia que nos dão hoje, assim como nos deram ontem e anteontem. Enquanto o golpe retumbante não chega, outro golpe vai se adensando, vai se alastrando, vai nos consumindo – em surdo gerúndio.
E
vai avançando. Existem bandidos que vêm comemorando sem maiores histrionices:
“Está tudo sendo dominado”. A bandidagem aderiu ao gerúndio. Para que o
improvável leitor visualize o que se vem passando, é mais ou menos como
arrancar do chão toda a flora e toda a fauna na Amazônia. Isso não acontece
assim, de uma hora para outra, num repente – vem aos poucos, num acontecendo.
Uns milhares de quilômetros quadrados, ou redondos, são incinerados hoje,
outros, amanhã, até que a gente vai descobrir que não há mais florestas a
proteger.
Algo
parecido se vai dando com a democracia brasileira. Enquanto uns e outros pensam
que vão comer o bolsonarismo pelas bordas, o bolsonarismo está comendo o Estado
por dentro. Enquanto uns e outros se divertem postando piadinhas contra o
ministro que falou que passaria com a boiada da desregulamentação ambiental, os
boiadeiros do apocalipse ateiam fogo nos fundamentos das instituições
democráticas.
Não
obstante, uns e outros dizem que as instituições funcionam “normalmente”.
“Normalmente” como, cara-pálida? A democracia deste cemitério congestionado
chamado Brasil não está mais sob ameaça: já está em pleno desmanche, só estão
ficando de pé as fachadas. Por enquanto. O cientista político e professor da
USP André Singer vem apontando, também no gerúndio, o descomunal
desmantelamento, mas uns e outros não ligam. Em recente entrevista ao site
Opera Mundi, Singer afirmou que está em curso “um processo incremental, tão gradual
que a sociedade não percebe o que está acontecendo”. No gerúndio.
Exemplos?
Ora, todos. Intervenções brandas e brutas na Polícia Federal seguem se
acumulando. De quantos escândalos mais você precisa para começar a franzir o
cenho? Perseguições ideológicas contra setores da cultura, dentro e fora do
Estado: isso por acaso faz parte da “normalidade” democrática? Olhemos para a
devastação da ciência, para o seletivo torniquete orçamentário que vai
desativando o sustento da educação, para a metamorfose macabra que fez do
Ministério da Saúde uma usina de estatísticas sobre cadáveres. Olhemos para o
extermínio das melhores tradições diplomáticas do Itamaraty. Estamos imersos
num gerúndio massacrante, que vai dizimando até carreiras de Estado, como a dos
fiscais que se acreditavam investidos do poder de vigiar crimes contra o meio
ambiente.
Quantos
anos serão necessários para reconstruir o Brasil, para reflorestar a terra
ardente, para reavivar os instrumentos institucionais que fazem uma democracia
funcionar? Quanto trabalho teremos de empenhar para cada dia de estrago
implementado intencionalmente por esse governo? Quantas vidas teremos de pagar?
Enquanto
isso, os fundamentos continuam despencando. No início da semana, a organização
internacional Repórteres sem Fronteiras divulgou mais uma pesquisa sobre a
liberdade de imprensa. Pela primeira vez, o Brasil figura na chamada “zona
vermelha”, onde o trabalho de jornalistas é considerado “difícil”. No mesmo
grupo estão Nicarágua, Turquia, Rússia e Filipinas. Também isso não aconteceu
de um dia para o outro, foi produto de um longo e árduo trabalho dos golpeantes
em gerúndio. Enquanto o estrago se vai expandindo, vai ficando mais “difícil”
encontrar jornalistas que possam investigar e contar o que está acontecendo. Em
gerúndio, em gerúndio, em gerúndio.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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