Como um gigantesco navio sem capitão, singrando
desgovernado por um oceano viral que rotineira e impiedosamente ceifa, num
intervalo de 24 horas, perto de 4 mil vidas brasileiras — número equivalente ao
total acumulado de mortes reportadas pela China em toda a pandemia —, a
combalida nau chamada Brasil sofreu nos últimos dias mais uma série de golpes
devastadores. Como se não bastasse ter de combater uma pandemia fora de
controle, em meio a um colapso sem precedentes de todo seu sistema hospitalar
e, no processo, ter se tornado um verdadeiro pária internacional, o Brasil
assistiu atônito à escalada vertiginosa do pandemônio político que o assola.
Rotulado de forma quase unânime pela imprensa internacional como inimigo
público número 1 do combate à pandemia de Covid-19 em todo o mundo, o atual
ocupante do Palácio do Planalto deu claras demonstrações públicas e notórias de
estar perdendo qualquer tipo de controle — se algum dia o teve — do caos
semeado por ele mesmo desde a ascensão ao maior cargo da República.
Acuado pela decisão do STF de obrigar o presidente do Senado Federal a instalar uma CPI para investigar a conduta do governo federal no combate ao coronavírus, isolado e demonizado pela comunidade internacional, e tendo sua tentativa de interferência nas Forças Armadas repudiada simultaneamente pelos comandantes das três Armas, o presidente da República parece ter achado um novo moinho de vento para chamar de seu inimigo preferido: os cientistas. Numa declaração proferida aos berros numa de suas aparições públicas em Brasília, o gestor e principal responsável pela maior catástrofe humanitária da história da República brasileira vociferou contra toda a comunidade científica brasileira (e mundial, presume-se) nos seguintes termos: “Cientistas canalhas, se não têm nenhum remédio para indicar, cale a boca e deixe (sic) o médico trabalhar”.
Ao indivíduo que transformou imagens de infindáveis
fileiras de covas rasas, sendo abertas às pressas por todo o país, no mais
visualizado “cartão-postal” do Brasil atual em todo o mundo, ao mandatário que
selou o destino de centenas de milhares de brasileiros cujas mortes poderiam
ter sido evitadas, levando o Brasil ao ponto em que as mortes em um mês podem
superar os nascimentos pela primeira vez, ao gestor que impediu a compra de
dezenas de milhões de vacinas quando elas ainda estavam disponíveis no mercado
internacional, ao propagandista que estimulou a população a usar medicamentos
sem nenhuma eficácia comprovada contra o coronavírus, ao presidente que nunca
ofereceu uma palavra de consolo ou solidariedade a uma nação ferida e golpeada
mortalmente como nunca antes na sua história, e que negou qualquer ajuda digna
a milhões de brasileiros que diariamente convivem com a perda irreparável de
seus entes amados, enquanto tendo de tomar a monstruosa decisão entre morrer de
fome ou de Covid-19, a Ciência e os cientistas brasileiros só têm uma reposta a
oferecer: Basta!
No momento em que todos nós, brasileiros,
testemunhamos a manifestação de uma bifurcação trágica e decisiva, é preciso
dar um “Basta!” definitivo, decisivo e inequívoco aos inúmeros crimes
perpetrados contra os brasileiros de hoje e os que ainda hão de nascer, antes
que seja tarde demais. Tarde demais para salvar centenas de milhares de vidas
que ainda podem ser salvas; tarde demais para salvar o que resta das
instituições e da democracia brasileira; tarde demais para evitar que o país
cruze o limiar de um ponto de onde serão precisos anos ou décadas para que dele
se possa retornar.
Em nome dos 362.180 brasileiros que pagaram com a
própria vida pelo maior ato de incompetência e inépcia da nossa história, em
nome de todas as famílias das vítimas desta que já é a maior tragédia nacional,
em nome da preservação do Brasil como nação e, finalmente, em nome da garantia
de um futuro digno para futuras gerações de brasileiros, chegou a hora de
remover do posto o carcereiro inominável que nos transformou a todos em
prisioneiros, potencialmente condenados à morte, seja de fome ou de asfixia;
isolados de todo o mundo e vivendo diariamente à merce dos delírios e desmandos
de alguém que, por atos e palavras, renunciou voluntariamente a suas
responsabilidades constitucionais de proteger, a qualquer custo, o povo
brasileiro de uma guerra de extermínio contra um inimigo letal.
*Médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke
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