O presidente Jair Bolsonaro advertiu os “amigos do Supremo Tribunal Federal” que “daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui”, referindo-se à possibilidade de tumultos como consequência dos efeitos econômicos da pandemia de covid-19. “Não estou ameaçando ninguém”, ressalvou Bolsonaro, para, em seguida, ameaçar: “O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar uma providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí, só não vê quem não quer”. E completou: “Eu só faço o que o povo quiser que eu faça”.
Como
sempre, é difícil entender exatamente o que quis dizer o presidente Bolsonaro,
cuja dificuldade com o idioma pátrio e com o raciocínio lógico é conhecida de
todos. Mas é cristalina a tentativa de intimidar os demais Poderes – não só
seus “amigos do Supremo”, de onde partiu a ordem para a instalação de uma CPI
no Senado para investigar a delinquente gestão federal da crise, mas também o
próprio Congresso, a quem cabe arrolar os responsáveis pelo morticínio.
O arreganho bolsonarista, antes de demonstrar poder, evidencia paúra. São tantas e tão robustas as evidências de múltiplos crimes na condução da crise que dificilmente os envolvidos escaparão impunes se a CPI fizer seu trabalho. É por isso que Bolsonaro trabalha com tanto ardor para miná-la – chegando a ponto de instruir um senador a inviabilizar a comissão, de avisar que daria uma “porrada” no líder da oposição no Senado e de ameaçar ministros do Supremo de impeachment, como registrado em diálogo gravado.
As
ameaças em série – que em si mesmas constituem delito, como ressaltado neste
espaço, ontem, no editorial Ameaçar é crime – queimam as
precárias pontes políticas que ainda servem a Bolsonaro e, ao fim e ao cabo,
não amedrontam ninguém. Ao contrário: o Supremo continua a adotar decisões
contrárias aos interesses liberticidas do presidente e o Congresso afinal
instalou a CPI, cujos desdobramentos podem enfraquecer ainda mais seu governo.
De quebra, a OAB formulou um pedido de impeachment baseado nas conclusões de
uma comissão de juristas, que caracterizou as ações e omissões de Bolsonaro
como crimes comuns, de responsabilidade e contra a humanidade.
A
esta altura, as manobras bolsonaristas para ampliar o escopo das investigações
da CPI, colocando na mira a administração de Estados e municípios, serviram
somente para escancarar a conhecida estratégia do presidente de criar tumulto,
desviar a atenção e embaralhar as evidências dos crimes. Para os propósitos do
departamento de agitação e propaganda do governo, isso pode até funcionar, pois
prejudicaria governadores tratados como inimigos por Bolsonaro. Ademais, a julgar
pelo histórico das comissões de inquérito, investigações com muitos focos não
chegam a lugar nenhum – exatamente o que pretende o governo.
Assim,
não é possível dizer, hoje, que resultados práticos terá a CPI, mas uma coisa é
certa: se a comissão interrogar como deve o ex-ministro Eduardo Pazuello, sob
cuja administração no Ministério da Saúde o Brasil se tornou um dos piores
países do mundo na gestão da pandemia, ficará clara a inquestionável
responsabilidade de Bolsonaro – que menosprezou a doença, trocou três vezes de
ministro da Saúde, desestimulou medidas de distanciamento social, rejeitou o
uso de máscara, incentivou aglomerações, fez campanha por remédios inócuos,
sabotou a vacinação e hostilizou países dos quais dependemos para obter insumos
para a imunização.
O intendente Pazuello, obediente servidor do presidente, terá a oportunidade de explicar por que doentes de covid morreram asfixiados em Manaus por falta de cilindros de oxigênio. Mas também poderá esclarecer por que o governo investiu em cloroquina enquanto atrasou a compra de vacinas e de insumos hospitalares, por que deixou de financiar leitos de UTI em meio à emergência sanitária e por que não fez campanha oficial pelo isolamento social, única forma de frear a contaminação na ausência de imunização em massa. O País está ansioso para ouvir as explicações – sob juramento – do ex-ministro.
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