sexta-feira, 7 de maio de 2021

César Felício - A CPI e um revólver sobre a mesa

- Valor Econômico

Bolsonaro tem ambiente para fazer ameaças

Em Madrid, esta semana, a governadora local, Isabel Diaz Ayuso, arrasou nas eleições: poderá governar o estado onde está a capital espanhola apenas com o seu partido, o direitista PP, e o apoio do Vox, de extrema-direita. Diaz fez uma campanha negacionista, sabotando sistematicamente campanhas de isolamento social, e chegou a dizer que o impacto do covid-19 se devia a maus hábitos dos imigrantes.

No dia 21 de abril, sexagésimo aniversário de uma quartelada na França, um manifesto assinado por 20 generais e 100 oficiais de alto escalão na reserva alertou que “a França está em perigo”, e que “nossas bandeiras tricolores não são pedaços de pano”. Protestaram os militares contra a discriminação promovida pelos movimentos antirracistas. “Não é hora de procrastinar, caso contrário, amanhã a guerra civil acabará com esse caos crescente”, advertiram.. O governo de Macron prometeu tomar providências contra o grupo. Empatada com o presidente francês nas pesquisas para a eleição de 2022, a direitista Marine Le Pen elogiou a mensagem ameaçadora da caserna.

Os exemplos recentes de turbulência na democracia da Espanha e da França mostram que o tempo não está fechado apenas em países como El Salvador, onde presidente e Congresso destituíram a Suprema Corte; ou o Peru, em que o segundo turno das eleições presidenciais será disputado por dois potenciais autocratas, o esquerdista Pedro Castillo e a direitista Keiko Fujimori.

Recentemente reeleito presidente do Cebrap, centro de estudos que completou agora 52 anos de funcionamento, o filósofo Marcos Nobre alerta que o cenário externo não é alvissareiro para a democracia, o que favorece a tática do presidente Jair Bolsonaro de sempre tensionar o ambiente quando se sente acuado.

“Tem gente achando que a chegada de Joe Biden ao poder nos Estados Unidos foi um ponto de inflexão na maré populista autoritária. Não devemos subestimar a extrema-direita. São muitos os exemplos que mostram que é muito grave a situação atual da democracia no mundo”.

O ponto em que Nobre se agarra é esse: Bolsonaro não está isolado, a página do trumpismo não foi virada e o presidente não está inventando nada: adota no Brasil a mesma tática usada por outros discípulos de Steve Bannon.

“Bolsonaro não governa e não quer governar. Seu poder deriva do fato de ser visto por seus apoiadores como um homem boicotado pelo sistema”, diz Nobre. Para o filósofo, o presidente “está fraco o necessário para se vitimizar e forte o suficiente para botar gente na rua. Com isso, consegue o que quer por ora: uma minoria que bloqueie o impeachment e o leve para o segundo turno em 2022”.

Um exemplo do que Nobre diz: o presidente fracassou na tentativa de impedir a instalação da CPI da Pandemia no Senado, depois fracassou na articulação para ter controle do grupo. O depoimento do ex-ministro Pazuello é tão temido pelo Palácio do Planalto que foi convenientemente adiado para o dia 19.

Neste meio tempo, os bolsonaristas extremados ocupam as ruas em pleno dia 1º de maio, uma data icônica para a esquerda, e pedem intervenção no Supremo Tribunal Federal e carta branca para o presidente agir contra governadores e prefeitos, com apoio das Forças Armadas.

O presidente cumpre sua parte no dueto: declara depois que fará o que o povo pedir. Avisa a todos, que baixará o tal decreto que, na prática, proíbe o isolamento social no Brasil. O ministro da Defesa, em diversas declarações públicas, dá a entender que acatará o que Bolsonaro determinar.

O presidente, portanto, colocou o revólver sobre a mesa, para ver como o “sistema” (Congresso, Judiciário, mídia, classe empresarial) reagirá. Quatro dias antes do depoimento de Pazuello, vai redobrar a aposta: Bolsonaro convocou em sua “live” para um ato no dia 15, promovido por “entidades de produtores rurais”, que em postagens nas redes sociais promete ser “contra o Supremo e pelo fim das medidas de isolamento social”. Prometeu também já para este domingo agora um passeio com mais de mil motociclistas por Brasília. E tome falação a favor do voto impresso e da cloroquina. É uma forma de ficar rodopiando o revólver sobre a mesa com o dedo, enquanto conversa com os interlocutores O risco é o tiro sair pela culatra..

Muito se falou em encontrar o “Biden brasileiro”. Ou seja, a personagem da velha política, há um certo tempo escanteada que retorna para, de modo improvável, encarnar a resistência a um populismo disruptivo e congregar em torno de si forças heterogêneas.

Foram mencionados para vestir este figurino tanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, quanto o senador Tasso Jereissati, pelo PSDB. Na opinião de Marcos Nobre, é melhor desistir, essa busca é inútil. O sistema político brasileiro não tem os mecanismos de decantação que existem nos Estados Unidos que resultaram em Biden como o anti-Trump.

De início, aqui não há um sistema bipartidário, como etapa final de prévias internas. As eleições brasileiras não estimulam a formação de frentes muito amplas, nem mesmo com o modelo de dois turnos. A direita não bolsonarista ou se nucleia em torno de um candidato, ou irá se pulverizar. Sua adesão a Bolsonaro ou a Lula é impossível. Só isso já rompe a ideia do “Biden brasileiro”.

Na visão de Nobre, da qual esta coluna compartilha, a eleição de 2022 tende a ser inóspita para marinheiros de primeira viagem. Não há espaço para outsider como havia em 2018, pelo fato de, desta vez, existir um incumbente.

O que se convenciona chamar de “centro” irá convergir (ou pulverizar de vez) em torno de nomes já postos: Doria, Tasso e Eduardo Leite, no PSDB; Mandetta, no DEM; Ciro Gomes, no PDT; e João Amoêdo, pelo Novo. Destes, em tese, o candidato com mais capacidade de agregar deveria ser Ciro Gomes.

Ciro permite acordos para um lado e para o outro. ACM Neto, na Bahia, Kalil em Minas Gerais, o grupo de Paes no Rio, para ficar em três exemplos citados por Nobre, poderiam estar com ele.

Para agregar essa variante do conservadorismo, Ciro teria que beijar a cruz, como Lula beijou, e firmar a sua carta ao povo brasileiro.

No papel, funciona. O caminho para Ciro crescer está na direita, e não na esquerda. Na prática não é assim. Uma das armadilhas para quem está no centro é causar ojeriza nos dois polos, em vez de ser um ponto de convergência. Ciro vive essa armadilha.

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