A
manipulada insurreição eleitoral antipolítica de 2018 subverteu a ordem e
anexou o Brasil ao Ministério da Economia como uma província secundária e incômoda
Os
quase cem anos da era de ascensão social no país estão chegando ao fim nestes
dias de incerteza e de desorientação política. É verdade que o Brasil da
Revolução de Outubro de 1930, que confirmou a opção pelo trabalho livre com
direitos sociais, começara a decair com a opção econômica neoliberal de 1964.
Esse processo poderia ter sido revertido se houvesse aqui, em vez de golpismo
lucrativo, suficientemente amplo discernimento político e empresarial.
Aquela
foi uma era de otimismo e esperança em que os gestores políticos da economia
brasileira criaram condições para que o país superasse os bloqueios do atraso
para ingressar no mundo moderno. Eram inteligentes, criativos e patriotas.
As
sociedades não mudam da noite para o dia. Precursores daquele momento de
reconfiguração social, de opções corajosas e criativas, já haviam começado a
agir nas décadas finais da escravidão.
O
pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) analisou e interpretou o escravismo na
perspectiva do que poderia ser o Brasil e ainda não era porque agrilhoado ao
cativeiro, que escravizava corpos e mentes. Também dos senhores de escravos.
Eles próprios, cativos da mentalidade senhorial.
O
grande empresário paulista Antônio da Silva Prado (1840-1929), conservador, o
maior fazendeiro de café do mundo, banqueiro, industrial, diretor e acionista
da melhor ferrovia brasileira, ministro do Império na crise do escravismo,
revolucionou o Brasil. Promoveu e personificou a modernidade possível, que o
país podia e de que carecia. Seria o primeiro prefeito de São Paulo por dez
anos.
Fez na cidade uma precursora revolução urbana, transformando-a de um povoado de casas de taipa numa metrópole moderna.
Morreu
em 1929, deixando ao Brasil o maior legado de sua história social e econômica:
desenvolvera a estratégica política de extinção da escravidão contra os
interesses imediatistas dos fazendeiros, especialmente os de café. Abriu o
caminho para a generalização do trabalho livre através da imigração
subvencionada. Foi um subversivo do bem.
A
princesa Isabel teve a clareza de assinar a lei que resultou da interpretação
social e econômica e da articulação política desses dois artífices da história.
O
principal aspecto da trama abolicionista e modernizadora foi a da sua
“engenharia social”. Está num discurso de Antônio Prado ao Senado, em 1888, que
definiu a política de abolição da escravatura por meio de mecanismos de
política econômica e social que assegurariam aos trabalhadores liberdade e
possibilidade de ascensão social.
Os
milhões de desvalidos do país, pela primeira vez em nossa história, tornaram-se
trabalhadores livres, mas também e sobretudo, ainda que de diferentes modos,
sujeitos de direitos sociais.
Em
contraste com esse momento politicamente criativo, a iníqua falta de política
social de agora está revertendo o trabalho a mero instrumento de uma riqueza
desproporcional e em contraste com a extensa e clamorosa miséria dos dias
atuais. A maior metrópole do país miserabilizada por favelas, cortiços e
cafofos de moradores de rua, gente despejada da vida e despejada do Brasil. Um
país que fabrica miséria.
Não
apenas Nabuco e Prado devem ser lembrados nesta hora de desencanto e medo em
face da incompetência organizada dos omissos e irresponsáveis. Lembro de
Roberto Simonsen (1889-1948), engenheiro formado pela Escola Politécnica de São
Paulo, industrial, fundador da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.
Empresário
esclarecido, foi um dos fundadores da Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, que inaugurou entre nós as pesquisas e estudos sobre a cidade e sobre as
condições e o modo de vida da classe trabalhadora. Um jeito de administrar o
risco de efeitos perversos na acumulação capitalista sem compromisso social.
Simonsen
era também historiador da economia brasileira e professor na ESP. Seus estudos
lhe mostraram a importância de encerrar a história econômica de ciclos - o
ciclo do pau-brasil, o ciclo da cana-de-açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do
café. Uma nova era econômica era possível, baseada na indústria como polo
dinâmico da economia brasileira, com o reconhecimento ao direito de ascensão
social da classe trabalhadora.
Foi
teórico do nacional-desenvolvimentismo, o modelo econômico do empresário
responsável e consciente, preocupado com a empresa e a economia, mas também com
a responsabilidade social do capital e do capitalista.
A
manipulada insurreição eleitoral antipolítica de 2018 subverteu a ordem. Anexou
o Brasil ao Ministério da Economia como uma província secundária e incômoda.
Lugar de um experimento econômico e sanitário sem fundamentos científicos. E
dos caprichos de um presidente sem compromisso com o bem comum.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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