Em
São Paulo, descobri que as padarias não vendiam apenas pão. Eram uma
instituição
A
primeira padaria que me ficou na memória foi a Palamone, em Araraquara. Devia
ter sete para oito anos, plena Guerra. Ia com meu pai para uma fila, cada
pessoa com um cartão que lhe dava direito a tantos pães, conforme a família. Eu
não entendia, meu pai dizia, é a guerra, o racionamento, não tem farinha. A
segunda padaria foi a Pasetto, em frente ao Jardim Público. Nesta altura, eu
estava com dez anos, a Guerra tinha acabado e os Pasetto tinha uma carrocinha
mágica, que circulava pelas ruas, levando pão francês, sovado, aviãozinho e um
pão doce feito em fitas que se enrolavam, com coco entre elas. A Palamone e a
Pasetto fecharam, mas eu já tinha saído da cidade. Dos Pasetto, me relaciono
hoje com o Paulinho, médico de nomeada, e com a Tatiana, da Unesp, a primeira que
me deu a noticia que eu receberia o título de Honoris Causa.
Em São Paulo, descobri que as padarias não vendiam apenas pão. Eram uma instituição, parte essencial do cotidiano. Assim que cheguei e fui viver em um apartamentinho na esquina das ruas Bresser e Silva Telles, na primeira manhã, desci para comer pão com manteiga e café com leite. O balconista perguntou: pão na chapa? Média ou pingado? Começava minha aventura na selva paulistana. Na chapa? Média, pingado? Boiei, fiquei a olhar. Primeira lição sobre um clássico das padarias, o pão na chapa. A média veio não em xícara, mas em um copo americano, que já foi exibido no MoMA de Nova York como exemplo do design brasileiro, e que vendeu, desde 1947, 6 bilhões de unidades. Como poderia eu, em 1957, imaginar que no futuro escreveria para DBA a história da vidraria Nadir Figueiredo, que criou o copo?
Dali
até hoje, foram mais de mil pães na chapa e centenas de padarias que
frequentei, incluindo algumas em Berlim, onde eu ficava alucinado com a
quantidade de pães de todos os tipos e formatos.
Finalmente,
30 anos atrás, me instalei em Pinheiros e me tornei freguês da CPL, então nas
mãos de um sujeito chamado Zé Maria que saudava a todos, com um grito de
guerra: “É só alegria!”. Depois do Zé Maria veio o José Dias, português
pequeno, esperto, alma imensa, apaixonado pela Portuguesa, como todos padeiros,
e pelo Roberto Leal. Na CPL, acabei tendo um banco cativo junto ao balcão,
dividido nos finais de semana com “as meninas da CPL”, grupo de professoras de
faculdade aposentadas e também com taxistas que trabalhavam à noite e traziam
novidades, picantes algumas. Picantes? Meu Deus! Muitas transformei em
crônicas. Quase metade de minha vida frequentei a padaria, ali vendo Rolando
Boldrin, Luiz Tatit, Pedro Cavalcanti, Chico Pinheiro, Hélio Ziskind, Carlos
Alberto Sardenberg, jornalista da Globo, meu vizinho, Julio Lerner, o artista
plástico Genilson Soares, o editor Fernando Mangarielo. De minha banqueta,
escrevi mais de 30 histórias, José Dias emoldurou a maioria, ficaram expostas
numa das paredes. A vida de um chapeiro, modos de preparar pão na chapa, pão
com requeijão, pão com molho, linguiça com calabresa, rodelas de provolone.
Ali
ouço gente que pede pão branco, branquinho, pardo, moreno, quase negro,
bisnagas, broinhas, suco de melancia com abacaxi, laranja com mamão, açaí com
leite. Variações infinitas de gostos e tipos. Bem passado, mal passado, cru,
churrasco com cebola. Um chapeiro tem ouvido absoluto para captar ordens
gritadas e ter memória de elefante para nada esquecer, incluindo a ordem dos pedidos.
O dia de uma padaria começa com o café da manhã, as cervejas e caipirinhas do
almoço, os marmitex, os lanches, a calmaria da tarde, domésticas indo buscar
queijo, presunto, pizza salame, peito de peru, para os lanches da noite.
Estou
no bairro há quase onze mil dias e passei boa parte deles na CPL. José Dias,
que conduz a padaria, virou parente, irmão amigo de fé, camarada. Há anos,
começaram as queixas, José, reforme a padaria. Reforme, não dá. E então, na
pandemia, a reforma se deu, e o que está no lugar é outro lugar. Branco,
iluminado, vitrines modernas, uma foto do estádio da Portuguesa, outra da CPL
antiga, histórica. Levei um susto há dez dias. Voltando de Minas Gerais, dei
com enorme foto minha, entronizada, junto a uma minicrônica poética sobre o que
são as padarias para esta cidade. E a legenda: imortal de duas academias, a
Brasileira e a Paulista. Já tenho uma placa junto à mesa em que sempre me sento
no restaurante Genova, um prato a mim dedicado no Pasquale, o Orecchiente 37,
alusão a minha cadeira na Paulista. Sem esquecer o salão das Coxinhas de Bueno
de Andrada que leva meu nome. Afagos em vida. Quentes como devem ser, nada de
glórias frias, disse Lygia Fagundes Telles.
*É jornalista e escritor, autor 'Zero' e 'Não verás país nenhum'
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