Vera
Magalhães / O Globo
SÃO
PAULO — “Este é meu último livro”, vaticina Fernando Henrique Cardoso logo no
início da entrevista, por videoconferência, marcada em razão do lançamento de
“Um Intelectual na Política”, volume de memórias em que o ex-presidente passa
em revista sua formação acadêmica, ao mesmo tempo em que mostra como ela foi
entrelaçada com a política.
A
menos de um mês de completar 90 anos, FH mostra uma memória espantosa ao
enfileirar datas, árvores genealógicas (de sua família e de outras), endereços,
títulos acadêmicos, histórias dos tempos em que viveu em Paris e no Chile e a
linha do tempo que o levou a construir em paralelo sólidas carreiras como
professor e como político.
Também
sobram críticas a Jair Bolsonaro, que ele considera “mal sentado” na cadeira da
Presidência. E FH faz uma declaração de voto: se o segundo turno se der entre o
atual presidente e Lula, o voto será no petista.
Este
foi o livro em que o senhor colocou mais aspectos da sua vida pessoal? E de
onde vem essa memória prodigiosa?
Do
ponto de vista intelectual, sim. Embora eu me refira a processos sociais, do
Brasil e de fora, estou mais preocupado ali em mostrar como eu apreendi as
coisas, como foi minha formação. Isso fica entranhado na gente. Não é que custe
grande esforço, não. Eu sempre tive facilidade em lembrar coisas, e mesmo para falar
e escrever. Enquanto tiver memória, tem vida. Não consultei nada para escrever
este livro. É tudo de cabeça. Eu guardo. Agora me vem a preocupação contrária:
começo a esquecer as coisas. Não é que me esqueça, mas começo a confundir.
Quanto
tempo demandou a escrita do livro?
Escrevi
durante a pandemia. Se demorar a terminar a pandemia, terei de escrever outro
(risos).
A
forma como a vida familiar, acadêmica e política se mesclam na sua trajetória
chama muito a atenção.
É,
foi mais ou menos assim. Também por essas circunstâncias, acabei me mudando
muito, viajando muito. Uma das coisas que sinto falta nessa pandemia é de
viajar. Eu digo isso no livro: não basta ler, você tem de observar, viver as
situações, experimentar. Quando está em um país estrangeiro, tem de absorver a
vida, viver como se vive naquele país. Você tem de deixar o vento te levar. Eu
me adapto. Você só tem uma alternativa: mergulhar na vida.
Em
relação às ideias, o senhor participa dos primeiros círculos de leitura de
Marx, ainda antes dos anos 1960. Depois, abraça a social-democracia e acaba
sendo chamado de neoliberal. Como foi essa evolução?
Neoliberal
nunca fui. Mas essa evolução também veio de forma natural. A gente tem de
acompanhar as transformações do mundo. Nasci numa família que tinha
participação política desde o Império. Meu bisavô já era senador no Império, e
meu avô conspirou contra o imperador. Fui evoluindo, mudando sem dor.
O
que sente quando olha para o Brasil de hoje, em que existe um certo elogio da
ignorância, sucateamento da universidade, da educação da ciência?
Hoje existe um verdadeiro culto da violência. Veja o que houve no Rio de Janeiro. Violência sempre houve na História do Brasil. Mas hoje é um culto que vem da classe dirigente. Violência passou a ser virtude. Nunca assistimos a algo como vemos hoje, em que uma pessoa como Bolsonaro vira presidente da República. Ele está mal sentado ali. Dá pena. O Brasil merecia estar mais bem representado. Farei o que puder para que o Brasil supere isso. Veja os Estados Unidos: lá a barbárie não prevaleceu. O (Donald) Trump tentou, mas não conseguiu, porque lá os valores e as instituições são muito mais fortes.
O
último capítulo é intitulado “Uma Vida Bem Vivida”. É assim que o senhor se
sente?
O
título não é meu. É um pouco pretensioso… De fato, eu acho que eu vivi. Aos 90
anos não tem muito jeito: ou você viveu, ou não dá mais. Acho que fiz muita
coisa do que eu queria fazer. Não fiz tudo, é claro. Não se consegue.
Foi
acertada sua decisão de não se candidatar a mais nada depois da Presidência?
Foi.
Eu fui duas vezes presidente. É algo desgastante, você tem de estar 100% do
tempo voltado para aquilo: políticos, relação com o Congresso, decisões, a
imprensa. É muito tensa a vida de um presidente. Eu gostava, na verdade eu
vivia com prazer. Agora, quando estava terminando o segundo mandato, eu estava
cansado. O público cansa de você, mas você também cansa. Quando acabou, fui
para Paris e tomei a decisão de nunca mais ser candidato a nada. Não quero dar
conselho a ninguém, mas eu entendi que nunca mais deveria me meter na vida
eleitoral. Posso ter alguma influência, mas não poder. E não sinto falta disso.
Isso
nos remete ao Lula, que deverá ser candidato. A relação de vocês tem altos e
baixos. Vocês são personagens políticos de cepas opostas?
Não
sei. Se o Lula estivesse aqui agora, ele estaria muito à vontade, dominando a
conversa. O Lula sempre foi assim: se ele está num rio, é para se banhar.. Ele
sempre foi um fora de série. Ele sente o ambiente, e se impõe. Tem uma relação
no mínimo de ambivalência comigo. No geral, me joga pedras. Quando eu estava na
Presidência era dificílimo. Uma vez o chamei para ir ao Palácio. Ele foi com o
Cristovam (Buarque). E conversamos como se fôssemos velhos companheiros. Eu,
para ser sincero, gosto do Lula. Mas ele, em relação a mim, sempre está com a
guarda levantada. Não sei por quê.
O
que o senhor vislumbra para o Brasil em 2022?
Ganhe
quem ganhar em 2022, o Brasil não depende só disso. A sociedade tem pujança,
tem uma certa autonomia. Sou otimista. De qualquer maneira, o ideal seria que
ganhasse um terceiro. Até porque Lula e Bolsonaro já foram. Isso cansa. O
Bolsonaro não está bem acomodado lá. O Lula já esteve bem acomodado. Pode
voltar, mas aí a História começa de novo. De qualquer maneira, quem ganhar tem
de olhar para o povo. Novamente temos muita miséria no Brasil. É preciso alguém
que tenha um compromisso real com o povo. O Lula tem esse compromisso. Você não
pode perder o sentido da História. Vamos imaginar que ganhe Bolsonaro — eu não
quero, não votei nele nem nunca vou votar. Ele vai mudar o Brasil? Claro, em
certo sentido ele muda. Eu acho que para pior. Ele tem raiva: nós e eles. Isso
é muito ruim. É uma radicalização, uma polarização, e que não é verdadeira, não
está baseada na diversidade da sociedade. Então o que eu puder fazer para que
ele não vença eu vou fazer. Posso pouco.
O
senhor acredita na construção de um centro que rompa essa radicalização?
É
difícil. Porque você precisa, antes de construir um centro, que essa ideia seja
personificada em alguém. Há tempo para que alguém apareça ainda, mas não está
claro quem vai expressar essa ideia. Depende da capacidade da pessoa de se
conectar com esse momento do Brasil. Tem de ser alguém que seja capaz de falar.
De expressar um sentimento, e bater com o coração do povo. Não é necessário que
seja do PSDB. Se for, ótimo. Se não, vou com quem for. E se ficar entre Lula e
Bolsonaro, temos de escolher entre um dos dois.
E,
neste caso, quem o senhor vai escolher?
Da última vez, eu não escolhi. Desta vez não vou fazer isso. É preciso escolher. E eu não vou escolher o Bolsonaro.
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