sexta-feira, 14 de maio de 2021

Flávia Oliveira - Ainda marchando por igualdade

- O Globo

Trinta e três anos atrás, organizações do movimento negro brasileiro fizeram história no centenário da Lei Áurea. O Brasil caminhava para a redemocratização, os ativistas marchavam contra a farsa da abolição. Fazia cem anos que o país decretara o fim da escravidão, mas a liberdade tardava. Ontem, momento agudo da pandemia, do retrocesso em direitos e da brutalidade pelo Estado, mobilizados pela Coalizão Negra por Direitos, manifestantes voltaram às ruas contra a violência policial, a fome, a letalidade da Covid-19. De 1888 até hoje, pretos e pardos ainda padecem das mazelas nacionais, evidência de que o tempo passa, o racismo, não.

Ainda ontem, os repórteres Nicolás Satriano e Henrique Coelho, do portal G1, revelaram boletins de atendimento de cinco dos 27 mortos na mais letal operação policial da História do Rio de Janeiro, há uma semana, na comunidade do Jacarezinho — a 28ª vítima foi o inspetor André Leonardo de Mello Frias. A emergência do Hospital Evandro Freire, na Ilha do Governador, atestou faces dilaceradas, ferimentos por arma de fogo em membros inferiores, desvios ósseos em membros superiores. Sem identificação, os cadáveres foram descritos como homem negro I, II e III, homem pardo I e II.

Todos os mortos pela polícia fluminense no Jacarezinho eram pretos ou pardos. “Pode ser a prova mais evidente do racismo institucional da história contemporânea”, comentou o advogado Daniel Sarmento, que assina pelo PSB a ADPF 635, ação que levou o Supremo Tribunal Federal a proibir, em junho de 2020, operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia. No estado, em 2019, 86% dos mortos por intervenção de agentes da lei eram negros, apurou a Rede de Observatórios de Segurança no relatório “A cor da violência policial”. Em Pernambuco, a proporção bateu 93%, na Bahia, 97%.

Jovens e homens negros estão no topo das estatísticas de homicídios; mulheres negras, de feminicídio. Três em cada quatro brasileiros pobres ou miseráveis são pretos ou pardos, segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2020, do IBGE. Mulheres negras, 28,7% da população, equivalem a 39,8% dos brasileiros indigentes e a 38,1% dos pobres.

Dez anos atrás, o IBGE publicou pesquisa em que brasileiros de cinco estados revelavam percepções sobre desigualdade racial no país. Os entrevistados respondiam em que áreas da sociedade a cor da pele importava como fator de privilégio ou de exclusão. No topo, o mercado de trabalho, com 71% de citações; em segundo, o sistema de polícia e Justiça, com 68,3%.

O Instituto Locomotiva, no início deste mês, divulgou levantamento sobre o tema. Em 2021, 76% dos brasileiros ainda consideram que pessoas negras são discriminadas no mercado de trabalho. Mais da metade dos trabalhadores (57%) já testemunharam algum ato de preconceito ou humilhação contra negros; entres os autodeclarados pretos ou pardos, a proporção bateu 67%. Segundo o IBGE, autodeclarados brancos ganham em média 69% mais que pretos e pardos pela hora trabalhada. Homens brancos têm os maiores salários, mulheres negras, os menores. Negros são maioria entre desempregados, informais e trabalhadoras domésticas.

No Brasil da pandemia, as desigualdades se escancararam. A crise socioeconômica, gravíssima, é pior entre os negros. O atraso escolar que assombra crianças e adolescentes negras, moradores das periferias e dos rincões, é avassalador. Em 2019, antes da Covid-19, o IBGE já anotara que um jovem branco de 18 a 24 anos tinha o dobro de chance de um preto ou pardo de frequentar ou ter concluído o ensino superior. Faltam negros nos espaços de poder político, econômico, corporativo, militar.

A democracia brasileira carece de representatividade. E dela depende a equidade. Cento e trinta e três anos depois da assinatura da Lei Áurea, os negros brasileiros ainda marcham por liberdade, justiça, oportunidades. O 13 de Maio foi um marco legal, mas não transformou inteiramente um país, marcado pelo racismo estrutural, de cabo a rabo. Por isso, é comum assinalar o 14 de Maio, dia seguinte à canetada da princesa, como símbolo de mudanças nunca vindas. Até hoje.

O aniversário da Lei Áurea tornou-se efeméride dedicada à reflexão crítica sobre o significado da abolição. De um lado, reivindica o protagonismo dos negros na luta pelo fim da escravidão, historicamente eclipsado por Isabel. De outro, elenca barreiras a ser eliminadas, direitos a ser conquistados.

Mas 13 de maio também é dia de homenagear, nos rituais de umbanda, os Pretos Velhos, entidades que são antepassados a interagir com os vivos. Daí a internet pontuada de adoração às Almas Santas e Benditas (ou simplesmente às Almas), feijoada na mesa, café preto no copo, vela acesa. É agradecimento aos Vovôs e às Vovós que, cativeiro na memória, afeto na essência, seguem zelando por nós.

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