sexta-feira, 14 de maio de 2021

Entrevista | Marina Silva: 'Os ganhos ambientais obtidos com décadas de trabalho de diferentes governos foram pisoteados'

Fundadora do partido Rede Sustentabilidade diz que texto aprovado na Câmara é inconstitucional e prejudicará economia brasileira no exterior

Renato Grandelle / O Globo

RIO — Marina Silva é taxativa: no projeto de lei aprovado nesta quinta, a Câmara não flexibilizou o licenciamento ambiental — ele, na verdade, foi erradicado. Para a ex-ministra do Meio Ambiente e ex-senadora pelo Acre, o Senado será pressionado a mudar o texto, mas a Casa é, em sua maioria, dominada pelo “que há de pior no ruralismo brasileiro”.

Ela destaca que muitos juristas já preveem uma chuva de processos contra os licenciamentos liberados com base na nova lei, caso ela seja aprovada pelos senadores e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. O aval do Palácio motivaria um movimento em massa de flexibilização da legislação ambiental em estados e municípios, empenhados em atrair empreendimentos.

 Marina está entre os nove ex-ministros que publicaram uma carta alertando que o “projeto de Lei Geral do Não-Licenciamento Ambiental” poderia provocar, além de atritos em tribunais, o agravamento da crise econômica. A imagem do país no exterior ficaria ainda mais arranhada. Segundo ela, enquanto a comunidade internacional se esforça para acirrar as leis ambientais, o Brasil segue na contramão.

O projeto de licenciamento ambiental aprovado na Câmara foi elaborado sob a justificativa de que era necessário desburocratizar a legislação. A senhora concorda com esse argumento?

Não, é falacioso. Na verdade, a intenção é acabar com o licenciamento ambiental e favorecer empreendimentos sem cumprir regras de proteção ao meio ambiente e às comunidades. Há necessidade de modernizar a lei, mas isso não significa perder sua qualidade. Esse é um projeto complexo, que estava em debate há 17 anos, mas que foi aprovado sem audiências públicas com especialistas, cientistas, gestores públicos, ambientalistas e povos que serão potencialmente afetados, como ribeirinhos e indígenas. Os ganhos ambientais obtidos com décadas de trabalho de diferentes governos foram pisoteados.

Por que o projeto demorou tanto tempo para ser votado?

Porque é, de fato, muito polêmico. De um lado, há um grupo que tem um interesse legítimo em atualizar o licenciamento ambiental; do outro, há aqueles que querem acabar com ele, como aconteceu ontem. O Congresso passou a boiada porque sabe que a sociedade está com a atenção dividida, porque há um verdadeiro pugilato na CPI da Covid. O governo está aproveitando a pandemia, que já deixou mais de 400 mil mortos, para votar temas que não têm caráter de urgência urgentíssima.

Em carta, ex-ministros, inclusive a senhora, dizem que o projeto pode fulminar com o seu propósito principal, que é criar um ambiente de negócios. Por quê?

O empresariado será altamente prejudicado. Como o projeto é inconstitucional, haverá uma chuva de judicializações. O governo federal está dando a senha para que estados e municípios também mudem suas legislações, e haverá uma guerra ambiental entre eles, cada um querendo atrair investimentos a toque de caixa, acenando com o chapéu de todos nós, que é a destruição dos ecossistemas.

Como evitar a insegurança jurídica a partir de agora?

Acho que deveria ser criado imediatamente um comitê de advogados que trabalhasse junto à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para mostrar que empreendimentos aprovados com o novo licenciamento são inconstitucionais. O projeto aprovado na Câmara desrespeita a Constituição e o Sistema Nacional de Meio Ambiente. Esse tema merece o mesmo suporte que é dado por uma série de organizações que analisam as mudanças climáticas e a biodiversidade.

Como será a repercussão internacional do novo licenciamento, caso seja aprovado? Haverá algum dano à economia?

Já sofremos uma série de prejuízos devido à nossa política ambiental. Não conseguimos fechar o acordo do Mercosul com a União Europeia, e precisamos cumprir uma série de exigências, como bom desempenho em governança e responsabilidade social, para ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Mas nosso desempenho é nefasto, estamos na contramão de tudo o que está acontecendo no mundo. Enquanto o planeta está investindo em leis que ajudem a proteger o meio ambiente, nós estamos dando um tiro de misericórdia em anos de trabalho nesse setor. Imagine a possibilidade de licenciamento da ampliação de uma estrada sobre a floresta virgem. Este é o início de um processo de ocupação desordenada, de exploração de madeira. Ou, então, a aprovação de empreendimentos para a agropecuária sem a consideração de impactos sobre unidades de conservação e territórios indígenas. É impactante, não só para a imagem, mas também para a economia. Ninguém vai querer importar desmatamento, queimada e violência contra populações tradicionais.

A senhora acredita que o Senado, considerado mais sóbrio do que a Câmara, modificará o projeto?

Haverá maior mobilização por um debate, para que não repita o tratoraço que os deputados fizeram sobre o devido projeto legislativo. A sociedade civil, a comunidade científica e a imprensa conseguem direcionar melhor sua pressão porque o Senado é menor do que a Câmara. Mas acho que a maioria dos senadores tem uma visão atrasada, ligada ao que há de pior no ruralismo brasileiro, que está preocupado em fortalecer sua base eleitoral.

O novo licenciamento ambiental é mais uma facilidade perversa a esse segmento bolsonarista, que vem sempre ao lado de grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais. O agronegócio que se modernizou e está preocupado com exportações ainda é minoritário.

Se o projeto for aprovado, o que ocorrerá no dia seguinte?

Todos devem ficar atentos às licenças que serão dadas a partir daí. Aqueles que querem fazer atividades à revelia da proteção aos ecossistemas e às populações tradicionais terão projetos nefastos ao meio ambiente. Aqueles que se preocupam em preservá-lo e com as comunidades locais vão judicializar os processos. E, de fato, todos afrontam a Constituição. O grande perigo é a guerra das licenças de estados e municípios em busca de investimentos. A nova lei patrocinará a corrupção, o aliciamento e os interesses escusos.

A lei também cria a licença autodeclaratória, que pode ser emitida por alguns empreendimentos sem qualquer análise prévia por órgãos ambientais. Qual será o impacto dessa medida?

Por isso digo que é o fim do licenciamento ambiental. Atualmente, os processos de licenciamento vêm após audiências e há presença de técnicos, e mesmo assim algumas atrocidades são cometidas, como (o rompimento das barragens de) Mariana e Brumadinho. Imagine, então, o que acontecerá com o processo de autodeclaração, em que o agente público confia naquilo que o empreendedor declara como estando tudo em conformidade com a proteção do meio ambiente.

O projeto aprovado na Câmara abre a possibilidade de obras já existentes ampliarem suas edificações, como é o caso da mineração, sem a necessidade de uma nova licença. Bolsonaro trabalha para aprovar leis que facilitam o desmatamento e a implementação de obras de altíssimo impacto ambiental. Todos nós vamos pagar a conta.

Se o governo confia na declaração do empreendedor, o que ocorrerá com os órgãos de fiscalização ambiental, como o Ibama?

Serão ainda mais enfraquecidos. O governo faz entretenimento, cria factoides para ganhar tempo. Criaram o Conselho da Amazônia, agora vai a Força Nacional de Segurança, e anunciaram que o ministro Ricardo Salles terá um gabinete no Pará. Antes de viajar, ele suspendeu uma operação do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) que poderia ser efetiva contra a presença de gado em unidades de conservação.

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