terça-feira, 25 de maio de 2021

Entrevista| Paes de Barros vê falha de gestão e avanço da desigualdade

Debate sobre programas sociais deve migrar para reinclusão de desempregados, afirma economista

Por Lucianne Carneiro / Valor Econômico

Rio- Um dos idealizadores do Bolsa Família e hoje professor titular do Insper, Ricardo Paes de Barros afirma que a gestão da pandemia no Brasil transformou a crise numa situação crônica, que prejudica de forma mais intensa os mais pobres e contribui para o aumento da desigualdade. “Os pobres e as empresas iriam perder muito menos com um choque do que com a maneira agonizante com que a gente está fazendo, em que a coisa é arrastada, lenta”, diz.

Ele defende que o debate sobre programas sociais deve ser deixar de se concentrar no auxílio emergencial e incluir estratégias de reinclusão dos milhões de desempregados ao mercado de trabalho.

Seu alerta é de que a volta desses trabalhadores vai demorar tempo demais se ficar a cargo da “mão invisível [do mercado]”: “Precisamos de um programa poderoso de reinserção produtiva e não parece que isso está sendo pensado”.

Integrante da Comissão Consultiva do Censo, Paes de Barros critica a falta de diálogo do Congresso com o IBGE ao cortar o orçamento para o Censo Demográfico em 2021 e reconhece que ainda há risco de falta de recursos para sua realização em 2022, apesar da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ele diz que a execução do Censo na pandemia era controversa - como se viu até pelas diferentes posições entre países europeus -, mas que é fundamental a decisão de uma data, para nortear o trabalho do IBGE. “Não se pode definir ano a ano”, argumenta. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O STF determinou a realização do Censo em 2022? Ainda há riscos para a pesquisa? E a capacidade?

Ricardo Paes de Barros: O IBGE tem capacidade de sobra, está superpreparado para realizar o Censo. A questão é o jeito que o Orçamento foi definido. A decisão de adiar ou não adiar o Censo não é consensual. Só para ter uma ideia, a Inglaterra está fazendo o censo neste ano e a Escócia está deixando para o ano que vem. A Alemanha está deixando para 2022 e a República Tcheca faz neste ano. Não é surpreendente que haja opiniões nas duas direções no Brasil. Surpreendente é que a presidente do IBGE [Susana Cordeiro Guerra] na época foi a uma audiência no Congresso e ninguém questionou, o que dava a impressão de que era consenso de que íamos fazer, para dias depois ser cancelado. Se tinha um debate para ser feito, e parece ligado ao conflito do Censo na atual situação sanitária, era a hora de os parlamentares perguntarem. E não teve nada disso. Quando a gente toma decisões sem uma clara consulta ao IBGE e à Comissão Consultiva do Censo, tem um problema de governança que [sugere que] qualquer coisa pode acontecer. A possibilidade de chegar ano que vem e não ter orçamento [para o Censo] existe. Como a forma de decisão ser tomada foi meio obscura, acho que tem esse risco.

Valor: Há outras questões em risco?

Paes de Barros: Outra questão fundamental, que parece bem clara agora, é que o custo do censo será maior. A pandemia faz o Censo ficar mais caro. E, a cada ano que adia, esse custo aumenta. Se está construindo uma ponte e adia, ela começa a ficar mais cara. Isso porque há uma série de custos para atualizar as coisas que não seriam necessários antes. Um erro é acreditar que você pode ficar cortando o orçamento do Censo. Não pode. Você tem que aumentar. Ao contrário do que o Congresso brasileiro fez, o Departamento de Estatísticas das Nações Unidas tem um comitê de especialistas que acompanha o que ocorre no mundo, já que os censos de 2020 acontecem em vários países [nesta época]. E uma das questões que deixam muito claro é que o Censo ficará mais caro devido aos cuidados na realização e que porque terá que eventualmente ser feito em um período de tempo maior. A preocupação de adequar o censo à pandemia é uma questão mundial, que a presidente do IBGE levou ao Congresso. Mas não se escutou direito e se tomou uma decisão. Então, se a gente voltar a fazer isso no ano que vem, muita coisa no Brasil vai ter dificuldade de acontecer e não só o Censo.

Valor: O senhor citou o custo maior do Censo na pandemia, um alerta que era feito pelo sindicato. E agora o IBGE e o sindicato citam os investimentos necessários em 2021 para viabilizar o Censo em 2022...

Paes de Barros: Se a gente não fizer certos investimentos neste ano, pode ser que os investimentos necessários em 2022 sejam muito maiores. Há uma questão de ineficiência do processo. Acho que falta comunicação. O IBGE tem um planejamento estratégico para dez anos. Falta o Congresso chamar o IBGE, entender e negociar esse planejamento. Uma autoridade estatística como o IBGE não pode ficar tomando uma decisão dessa de um ano para o outro. Esse ano vamos ver o que faz, no outro ano, vamos ver... Não se pode definir ano a ano. Você não constrói uma hidrelétrica assim, por exemplo. O IBGE é a mesma coisa. É preciso tomar uma decisão de longo prazo e discutindo com o IBGE. É claro que pode haver discordâncias, a sociedade brasileira tem muita coisa para fazer com o dinheiro que tem. Mas as decisões precisam ser tomadas de uma maneira clara, com debate e visão de longo prazo. É preciso sentar juntos Legislativo, Executivo e IBGE para conversar e tomar a decisão. Lembro que o Congresso está de acordo que terá eleição no próximo ano: não se está discutindo corte no orçamento da Justiça Eleitoral e talvez não ter [eleição]. E nós tivemos eleição durante a pandemia.

Valor: Muito tem se falado sobre a importância do Censo para as políticas públicas. Como o sr. vê a questão?

Paes de Barros: O Censo tem tanta importância que a gente para de contabilizar essa importância. Acho que o IBGE deveria preparar um documento, ao longo da década, apresentando as vantagens de se fazer o Censo. A ideia é ter um documento científico e sólido, que mostre todas as vantagens da pesquisa. Se a gente conversar agora, vou lhe dizer várias, mas não chegarei perto da importância. Os benefícios são tão grandes e tão óbvios que talvez nunca tenham questionado a necessidade de um documento como esse. Mas é importante para a tomada de decisões e para o caso de questionamentos. Se tivesse esse documento sólido, talvez fosse mais difícil adiar o Censo.

Valor: Depois de muitos anos, o Brasil vai voltar ao mapa da fome. Qual é o custo da pandemia para os mais pobres?

Paes de Barros: A perda de renda dos trabalhadores, derivada da perda de oportunidade para trabalhar devido à pandemia, deve ter sido da ordem de R$ 200 bilhões em 2020. Já vínhamos em uma trajetória de pobreza crescente por causa da recessão. Só que parece óbvio e não dá para entender muito bem [o que aconteceu no Brasil]. Muitos países entenderam que é melhor ter uma perda grande e rápida do que ter uma coisa crônica. Para as empresas, era muito melhor parar tudo por 21 dias, ou por quantos dias os epidemiologistas indicassem, e concentrar a ajuda financeira nesse período. Seria planejar a parada, derrubar e controlar a pandemia e depois conseguir retomar [a economia]. Os pobres e as empresas iriam perder muito menos com um choque do que com a maneira agonizante com que a gente está fazendo, em que a coisa é arrastada, lenta. As perdas econômicas serão muito maiores da maneira como a gente está fazendo. E o que é pior. Numa parada brusca, é ruim para todo mundo. Quanto mais fica demorada e arrastada, quem não é pobre consegue se defender melhor, criar alternativas. É claro que tem quem vá perder muito, mas boa parte dos que não são pobres começa a desenvolver métodos de resolver o problema. Se tivesse sido feita uma parada brusca lá no início, a pandemia estaria mais concentrada nos grandes centros urbanos, mas ela foi progressivamente indo para o interior e espalhou por toda a parte. Um exemplo é o impacto na educação. No primeiro momento, todos os alunos sofreram. Depois de algum tempo, os alunos das famílias ricas já tinham aprendido a maneira de lidar com isso. Os que estavam mais envolvidos com educação. Provavelmente, com escola ou sem escola, estão aprendendo a mesma coisa. Mas para os mais pobres, à medida que a coisa se torna mais crônica, é também mais grave, porque não têm como se engajar. E aí você começa a abrir o leque da desigualdade. Se fizer algo agudo e parar, meio que afeta todo mundo de forma semelhante e tem menos desigualdade. Economicamente e em termos de minimização de perdas, o tratamento de choque me parece muito mais inteligente que o tratamento espaçado.

Valor: Como o sr. vê a gestão desta crise?

Paes de Barros: Acho que a gestão da crise, em vez de buscar gerenciar para uma crise dura e aguda, mas concentrada, optou por uma coisa mais espalhada. Quando se olha a taxa de transmissibilidade [que mostra o potencial de propagação do vírus e varia entre 0 e 1], o Brasil é o país que fica mais tempo perto de 1 ao longo do tempo. O país mantém um isolamento social que deixa a taxa de transmissibilidade perto de 1. E uma taxa de transmissibilidade perto de 1 é transformar a pandemia em crônica. Se você cravar uma taxa de transmissibilidade igual a 1 com um nível de mortes alto, cria uma coisa crônica. Se a taxa de transmissibilidade fica abaixo de 1, o país reduz o distanciamento e ela sobe de novo. Então se fica gerenciando a taxa de transmissibilidade em torno de 1. Ou seja, está transformando uma coisa que não deveria ser crônica em uma coisa crônica. Para cada pessoa, a pandemia não é crônica, mas para a sociedade brasileira virou crônica.

Valor: Como será a retomada desses pobres para o mundo do trabalho?

Paes de Barros: Fico bastante preocupado de se estar falando de coisas emergenciais, mas não de um megaprograma de inclusão produtiva, na verdade uma reinclusão produtiva, daqueles que perderam seu trabalho. Cada uma dessas 10, 15 milhões de pessoas que precisam voltar ao mundo do trabalho vão voltar em tempos diferentes, de maneiras diferentes e precisarão de apoios diferentes. Se a gente acreditar na mão invisível [do mercado], de que a economia vai deslanchar e aí tudo vai voltar... Vai [voltar], mas vai demorar muito tempo, vai ser arrastado. Precisamos de um programa poderoso de reinserção produtiva e não parece que isso está sendo pensado. Um programa desses agilizaria muito, faria com que muita da nossa pobreza fosse eliminada mais rapidamente.

Valor: Que formato seria este?

Paes de Barros: Esse é um programa que é executado localmente. Pode-se pensar num modelo como o do Crediamigo [programa de microcrédito produtivo orientado], em que tem um agente na comunidade conversando com cada um, dando assistência e promovendo educação financeira. Nesse caso, seria um agente de reinserção produtiva, que devia estar nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) [unidades públicas de assistência social]. Hoje existem mais de 250 mil agentes de assistência social. Se cada um atender cem pessoas, são 25 milhões de trabalhadores atendidos. A ideia é uma coisa híbrida, com eventualmente algum contato pessoal, então esses caras deveriam ter prioridade para receber vacina, da mesma maneira que vacinou rapidamente quem lida com a população de rua. É o pessoal da reinserção produtiva, que vai lidar com os desempregados. Esse profissional tem que estar muito bem capacitado e o Brasil tem várias instituições capazes de fazer isso com muita rapidez, como o Sebrae e o Banco do Nordeste. Precisa ter capacidade para chegar junto da família, diagnosticar o problema e desenvolver uma estratégia, um plano de cada família.

Valor: De que forma o programa se desenvolve?

Paes de Barros: O programa não pode se limitar a isso: dar para a família um plano e ir embora, não adianta muito. É preciso, ao mesmo tempo, desenvolver uma oferta de serviços, como formação profissional, certificação de habilidades, apoio à comercialização. Todos esses programas têm que estar disponíveis. São serviços produtivos, que vão promover a reinserção produtiva da pessoa, desde certificar ou melhorar uma competência até dar educação financeira e inclusão digital, por exemplo. Pode eventualmente precisar de algum crédito ou intermediação de mão de obra. É preciso trabalhar, por um lado, os agentes que vão visitar virtualmente ou presencialmente as famílias e descobrir o que elas precisam e, por outro, já criar os serviços. Com isso, o agente vai ter os serviços disponíveis para fazer um plano viável de apoio à família. O que estou descrevendo é um modelo semelhante ao do programa Chile Solidário, já adotado no Chile. Tudo isso acontece localmente. O governo federal paga a conta e dá a inteligência, pode desenvolver a tecnologia de abordagem a nível federal, mas ela é implementada a nível local.

Valor: Qual foi o problema do auxílio emergencial?

Paes de Barros: A gente não usou o conhecimento local para descobrir quem deveria ser beneficiado. Se tentar uma política nacional desempenhada e implementada nacionalmente, não vai funcionar. Cada pobre tem um problema diferente. Quem sabe o que está acontecendo na comunidade são os municípios e as organizações da sociedade civil que estão ali. Se o próprio município não se articular com a sociedade civil, não vai ter essa capilaridade. Esse governo falava mais Brasil, menos Brasília. Mas, por alguma razão que não dá para entender, há uma falta grande de diálogo entre os governos federal, estadual, municipal e a sociedade civil. Ninguém sai de uma crise dessas sem uma profunda articulação entre todo esse tecido da sociedade. Como se faz com a vacina? O governo federal dá a vacina para o Estado, que por sua vez dá para o município. Mas ela não vai com o nome do cara carimbado, tipo o vidrinho da família tal. O município tem umas estatísticas do IBGE, desatualizadas por causa do atraso no Censo, que diz quantas pessoas têm naquela faixa etária na cidade. Quem toma a decisão de quem será vacinado é o município. O mesmo deveria ser feito com o auxílio emergencial. O município correr atrás das pessoas que vão receber. Se fizesse isso, ia aprender muito ao longo do tempo. Na ponta, as pessoas sabem quem está passando necessidade e quem não está. E esse conhecimento de quem os que passam necessidade chegaria ao governo federal. E o que a gente fez? Tentou fazer uma coisa sem apoio dos governos municipais e da sociedade civil. Assim, meses depois, a gente sabe tanto sobre quem precisa como sabia no primeiro dia. É um programa que não aprendeu com ele mesmo, exatamente porque não usou a capilaridade. É isso o que falta.

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