terça-feira, 25 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Caso Pazuello reforça dilema das Forças Armadas

O Globo

As Forças Armadas enfrentam um dilema intratável, resultado de atitudes e políticas do presidente Jair Bolsonaro. De um lado, estão entre os mais privilegiados pelo atual governo. De outro, Bolsonaro insiste em desafiá-las para obter lealdade a seu projeto de poder. É nesse contexto que deve ser entendida a presença do general Eduardo Pazuello, sem máscara em plena pandemia, na manifestação de motocicletas que acompanhou Bolsonaro domingo no Rio.

Pazuello virou herói do bolsonarismo depois dos depoimentos repletos de contradições e mentiras semana passada na CPI da Covid. Sua presença no ato em que Bolsonaro desafiou abertamente as normas em vigor para prevenir o contágio abriu nova crise na cúpula das Forças Armadas. Militares da ativa — como Pazuello — são proibidos de participar de manifestações políticas. O Alto-Comando do Exército não poderá deixar o caso sem punição. O vice Hamilton Mourão afirmou que, antes, Pazuello deverá ir para a reserva.

Bolsonaro já entrara recentemente em choque com o Alto-Comando no episódio que resultou na demissão do então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes das três forças. Naquela ocasião, a nomeação do general Paulo Sérgio Nogueira para o comando do Exército foi um recado, pois mostrou que Bolsonaro não tinha poder para violar as regras que regem a sucessão.

Nogueira fora o pivô da crise, ao destacar em entrevista que o êxito do Exército no combate à Covid-19 derivava de diretrizes antagônicas às que Bolsonaro pregava — e que Pazuello tentava implantar no Ministério da Saúde. O objetivo da entrevista era tentar limpar a imagem dos militares, contaminada pela presença de Pazuello no governo e pela gestão desastrosa da pandemia.

Depois da crise, Bolsonaro continuou falando em “meu Exército”. Suas declarações de teor golpista saíram há muito do terreno das insinuações. Aparecer ao lado de um general da ativa, que violou uma lei básica da caserna para lhe prestar lealdade, é outra forma de exercer pressão sobre a cúpula das Forças Armadas, mais um desafio a uma instituição basilar da democracia.

Ao mesmo tempo, as benesses concedidas aos militares desde que Bolsonaro tomou posse são inequívocas. Tratamento semelhante é dado apenas à polícia e às demais forças de segurança. Para tais carreiras, o Ministério da Economia não parece impor restrição fiscal de nenhuma natureza. Enquanto o gasto com servidores civis cresceu no ano passado 1,3% em relação a 2019, a despesa com militares subiu 7,3%.

Na reforma da Previdência, militares foram beneficiados com uma reestruturação de carreira que, por enquanto, resultou em aumento de R$ 5,6 bilhões nas despesas, ou 17% acima do previsto, segundo revelou reportagem do GLOBO. Para não falar na última regalia: uma portaria baixada pelo Ministério da Economia feita sob medida para os militares da reserva, que permite acumular dois salários recebidos do Estado, independentemente de o total violar o teto constitucional.

Bolsonaro tenta de todas as formas fazer com que as Forças Armadas se curvem a seus desígnios. Mais uma vez, elas precisam repetir o que têm feito e demonstrar que conhecem perfeitamente seu papel na democracia. Mais uma vez, precisam resistir aos ímpetos autoritários de Bolsonaro, que só é comandante em chefe enquanto durar seu mandato. 

Fidelidade ideológica conta mais que competência para Bolsonaro

O Globo

O discurso de apresentação da médica Luana Araújo, anunciada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para assumir a Secretaria de Enfrentamento à Covid-19, parecia um ponto fora da curva num governo em que o presidente Jair Bolsonaro cultua o negacionismo, manda às favas os protocolos sanitários e defende o uso de remédios ineficazes contra a doença. Nem as paredes do Planalto devem ter ficado indiferentes quando Luana anunciou um trabalho “pautado nas evidências científicas”.

Engano. Dez dias depois de anunciada, Luana Araújo, formada pela UFRJ e pós-graduada em infectologia na Universidade Johns Hopkins, saiu de modo tão surpreendente quanto entrou. Motivo? Só a CPI da Covid poderá esclarecer. Queiroga se limitou a dizer que ela não assumiria mais o cargo e que o ministério buscaria outro profissional “com perfil semelhante”.

A ex-futura secretária não deu detalhes sobre a saída, mas divulgou uma nota que fornece pistas: “Fiz questão de evidenciar minha postura técnica, baseada em evidências, pautada pelo juramento médico que fiz e que norteia todas as minhas atitudes”. Suas posições eram conhecidas. Criticou o “tratamento precoce” com uso de drogas ineficazes, a que se referiu como “neocuranderismo”, e disse numa rede social que o Brasil estava “na vanguarda da estupidez mundial” .

Luana, que ainda não fora nomeada, é mais um nome que se inscreve numa extensa galeria. No próprio Ministério da Saúde, os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich deixaram o cargo por discordar dos desvarios de Bolsonaro, como sua obsessão pela cloroquina. A indicação da médica Ludhmila Hajjar, cotada para substituir Eduardo Pazuello, foi torpedeada por bolsonaristas devido a posições a favor do lockdown e contra as bizarrices do chefe da nação.

O presidente do Inpe, Ricardo Galvão, foi demitido porque os dados sobre desmatamento não agradavam a Bolsonaro. No Inep, a pressão ideológica tem levado à perda de quadros técnicos. A exoneração da pedagoga Sueli Macedo Silveira, coordenadora-geral de Avaliação dos Cursos de Graduação e Instituições de Ensino Superior, em abril, causou uma debandada de profissionais que não rezavam pela cartilha imposta pelo ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro. Sueli foi substituída por uma médica-veterinária.

Todas essas decisões mostram que, para Bolsonaro, fidelidade ideológica conta mais que competência — e o cambaleante ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é prova disso. A substituição do general Pazuello — após gestão desastrosa na Saúde — por Queiroga trouxe a esperança de uma mudança de rumo no ministério que tem a missão de combater a pandemia que já matou mais de 450 mil brasileiros. Mas percebe-se que a autonomia alegada pelo ministro tem limites — os impostos pelas crendices de Bolsonaro. A despeito das boas intenções de Queiroga de dar um perfil mais técnico ao ministério e devolvê-lo aos braços da Ciência, o fantasma do “neocurandeirismo” ainda assombra o Planalto.

General no palanque

Folha de S. Paulo

Presença de Pazuello em ato com Bolsonaro é transgressão e não pode ficar impune

Não é fácil encontrar precedente da presença de um general de divisão da ativa num ato político-partidário no Brasil. Sob a Constituição de 1988, a presepada de que tomou parte Eduardo Pazuello neste domingo (23), no Rio, é inaudita.

Dava-se na capital fluminense mais uma demonstração de alheamento da realidade patrocinada pelo presidente Jair Bolsonaro. Nessa versão rasteira de “O Selvagem da Motocicleta”, uma turma de arruaceiros em suas máquinas ruidosas estimula a aglomeração e despreza as máscaras durante uma pandemia que matou 450 mil pessoas.

É espantoso que outras autoridades locais não sigam o exemplo do governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), que multou Bolsonaro por afrontar as regras de cautela sanitária vigentes, durante passagem da fanfarra presidencial pelo estado na sexta (21).

Dois dias depois, no Rio de Janeiro, as transgressões não se restringiram ao domínio da saúde pública. O palanque do presidente da República exibia o general Pazuello —sem proteção facial, como já vai se tornando habitual nas aparições do ex-ministro da Saúde.

Foi demais até para o elevadíssimo grau de confusão entre a caserna e o governo civil fomentado pela administração Bolsonaro. Militares da ativa, caso de Pazuello, não podem participar de manifestações de cunho político-partidário.

As motivações do veto remontam ao próprio advento dos regimes republicanos. Quem está investido das armas e da autoridade para defender a nação de agressões externas não disputa o poder político, do contrário o sistema degenera para a guerra civil ou a ditadura.

O princípio da hierarquia e o comando das Forças Armadas também se veem desafiados quando um general subordinado resolve fazer demagogia palanqueira. Sargentos, tenentes, capitães, majores e coronéis também poderiam ficar tentados a demonstrar suas preferências partidárias, o que instalaria a balbúrdia entre os militares.

Por essas razões, o Regulamento Disciplinar do Exército decretado em 2002 relaciona expressamente entre as transgressões o ato de “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”.

Por isso a indisciplina do general Eduardo Pazuello não deveria passar sem a devida punição por parte do comando do Exército, sob pena de acumular-se mais uma nódoa —esta particularmente grave pelo precedente que estabeleceria— na imagem da corporação sob os auspícios de Jair Bolsonaro.

Já basta o desserviço que a fracassada passagem do general pela Saúde, em meio à crise ciclópica, e suas mentiras à CPI da pandemia prestaram à instituição militar.

Tem jeito

Folha de S. Paulo

Convicção nacional sobre chances do país encontra amparo na experiência global

A uma pergunta simples e direta —o Brasil tem jeito?— formulada pelo Datafolha, 90% dos brasileiros responderam afirmativamente, um percentual que pode parecer surpreendente.

Afinal, o país se tornou mais pobre nos últimos dez anos, com queda de sua renda média por habitante, e desde os protestos populares de 2013 tem mostrado elevado grau de descontentamento com seus governantes. Neste momento, vive o impacto devastador da pandemia em meio a grave desemprego e alta da inflação dos alimentos.

 “Ter jeito” decerto significa coisas diferentes para os entrevistados, conforme suas crenças, preferências e ambições. As convicções muito provavelmente seriam menores se a questão apresentasse alguma meta específica e um prazo para seu cumprimento.

Há tentativas de aferir de modo objetivo o sucesso e o progresso dos países, nenhuma delas plenamente satisfatória. Uma das mais conhecidas é o Índice de Desenvolvimento Humano, calculado pela ONU a partir dos indicadores principais de riqueza material, escolaridade e expectativa de vida.

Nessa medida, o Brasil apresenta o 84º melhor desempenho entre 189 países e lenta melhora nas últimas décadas. Seu IDH de 0,765 (numa escala de 0 a 1) o coloca em uma espécie de classe média alta global, o que dá argumentos aos que preferem ver o copo meio cheio.

Trata-se, contudo, de um índice questionável e incompleto. Seus autores, não por acaso, buscam incorporar ao cálculo elementos como a desigualdade social e a situação ambiental —como poderiam levar em conta a segurança pública ou as liberdades democráticas.

A farta literatura sobre o desenvolvimento das nações tampouco dispõe de muitas certezas. Pode-se dizer, no entanto, que o Brasil serve de exemplo nos estudos sobre as muitas dificuldades envolvidas em deixar o grupo da renda média e ingressar no mundo rico —e esse é o copo meio vazio.

A história demonstra, de todo modo, que não existe fatalismo na evolução dos países. Uns avançam mais rapidamente que os demais, como no caso recente da Coreia do Sul, alguns entram em declínio relativo, como a Argentina, outros colapsam, como a Venezuela.

Perdoe-se o truísmo, tudo depende das escolhas de cada sociedade e, também, de alguma sorte. A resposta dos brasileiros, pois, está correta, o que não significa que o Brasil esteja fadado a dar certo.

Inflação mais desemprego

O Estado de S. Paulo

Inflação esfola o trabalhador, o desemprego o esmaga. Esses dois infortúnios só raramente ocorrem ao mesmo tempo – e juntá-los tem sido um dos feitos memoráveis do atual governo. Enquanto o presidente passeia sem máscara, provoca ajuntamentos e comanda desfiles a cavalo ou de motocicletas, como se houvesse algo para celebrar, dezenas de milhões de brasileiros enfrentam as durezas da ocupação escassa, do dinheiro curto e do aumento do custo de vida. A inflação ficará acima da meta neste ano e no próximo, segundo as últimas projeções, e, pior que isso, poderá estourar em 2021 o limite de tolerância – de 5,25% – fixado pelas autoridades.

Passado o primeiro choque da pandemia, a atividade econômica voltou a crescer, embora em ritmo ainda insuficiente para zerar o recuo do ano passado. A desocupação permanece elevada e o custo de sobrevivência das famílias, já em alta sensível nos meses finais de 2020, continua avançando. Mesmo com algum recuo no segundo semestre, a inflação oficial, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), poderá fechar o ano com alta acumulada de 5,3%, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia. No mercado, a mediana das projeções aponta 5,24% para este ano, taxa bem superior à meta (3,75%) e muito próxima do limite superior de tolerância, de acordo com a pesquisa Focus, do Banco Central (BC).

A mesma pesquisa registra, com base num grupo menor de instituições, uma projeção mais atualizada: 5,36%. Para 2022 o relatório indica uma alta de preços – de 3,67% – superior ao centro da meta, fixado em 3,5%. Só em 2023 o aumento do IPCA deverá voltar ao centro do alvo, de 3,25%, mas essa previsão está longe de ser tranquilizante. As pressões continuarão fortes e, se nada tornar o quadro mais complicado, a alta de preços baterá na meta. Uma folga significativa no ritmo da inflação parece improvável, num ambiente de incerteza e dólar instável.

A novidade mais favorável no front inflacionário é um certo arrefecimento dos custos da comida – à primeira vista, uma bênção para os pobres. Nos 12 meses até abril os preços de alimentos consumidos em casa aumentaram 15,5%, 3,6 pontos porcentuais a menos que no período até janeiro. Mas esse grupo permaneceu, como observam os autores do estudo do Ipea, como principal foco de pressão inflacionária. Excluído o impacto dos preços dos alimentos, a inflação nos 12 meses até abril caiu de 6,76% para 5,34%. Mas o quadro muda quando se observam certos detalhes.

No caso da comida, o arrefecimento pode ter sido passageiro. Além disso, os novos aumentos, mesmo quando mais moderados, ocorrem sobre uma base muito elevada, sem proporcionar de fato um alívio. Além disso, os aumentos de preços monitorados, como os de eletricidade e gás, também complicam severamente a situação das famílias pobres. Não basta pôr algum alimento na panela. É preciso ter meios para cozinhá-lo. Todos esses problemas se tornam mais graves quando afetam pessoas desocupadas, sem renda ou com renda comprimida.

Os últimos números do desemprego são do trimestre dezembro-fevereiro. Nesse período havia 14,4 milhões de desempregados, equivalentes a 14,4% da força de trabalho. Nenhuma informação dos meses seguintes sugere mudança significativa nas condições de emprego. Se tiver ocorrido alguma melhora, deve ter sido muito moderada, a julgar pelas condições fracas do consumo e da atividade na indústria e no setor de serviços. Também quanto a esse ponto a situação brasileira é uma das piores, quando se observam as economias emergentes e as desenvolvidas.

Nos 37 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a inflação nos 12 meses até março estava em 2,4%. Na União Europeia havia chegado a 1,7%. Nos Estados Unidos havia atingido 2,6%. No Brasil havia batido em 6,1%. Na OCDE, em março, o desemprego médio havia recuado para 6,5%. Nenhum chefe de governo dos países desse grupo foi filmado em aglomerações ou comandando um desfile de motociclistas.

O novo ‘Atlas do Estado Brasileiro’

O Estado de S. Paulo

Elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base em dados de 2019, a nova edição do Atlas do Estado Brasileiro revela que o Judiciário continua exorbitando em matéria de gastos com folha de pagamento de magistrados e serventuários judiciais. Ao todo, o Judiciário é composto por 91 tribunais e, em suas diferentes instâncias e braços especializados, a média salarial é a maior dos Três Poderes.

Na esfera estadual, por exemplo, o salário médio dos juízes e servidores dos Tribunais de Justiça era de R$ 10,2 mil, em 2019 – mais do que o dobro do que a média salarial do funcionalismo do Executivo, que é de R$ 4,8 mil. Na esfera federal, o salário médio da magistratura e dos serventuários dos tribunais mantidos pela União era de R$ 15,3 mil, em 2019, ante R$ 9,4 mil no Executivo. As mesmas diferenças também foram registradas no Poder Legislativo. No âmbito estadual, o salário médio nas Assembleias era de R$ 7,7 mil, enquanto na Câmara dos Deputados e no Senado ele foi de R$ 9,3 mil. 

Além das diferenças entre as médias salariais, o estudo do Ipea revela que no Judiciário há maior concentração de servidores com remuneração elevada. Nos tribunais federais, 48,77% dos serventuários recebem acima de R$ 15 mil por mês, ante 18,59% no Executivo federal e 21,35% na Câmara e no Senado. Nos Estados, 16,45% dos servidores dos Tribunais de Justiça ganham acima de R$ 15 mil, enquanto no Executivo essa proporção é de 3,36% e no Legislativo, de 15,75%. 

Esses valores dizem respeito apenas aos salários brutos. Eles não incluem os penduricalhos, como são chamados os expedientes concebidos pelas corporações judiciais com o objetivo de burlar o teto remuneratório do funcionalismo estabelecido pela Constituição, que são pagos a título de auxílio para moradia, transporte, saúde, bonificações, gratificações e uma infinidade de benefícios retroativos assegurados por decisões judiciais. Ou seja, por decisões tomadas pelos próprios beneficiários. 

Como esses penduricalhos são pagos a título de verba indenizatória, e não como vencimentos, seus valores não são considerados no cálculo do teto salarial estabelecido pela Constituição para o funcionalismo, que hoje é de R$ 39,2 mil. Além de pagar vencimentos mais altos, o Judiciário fica a salvo de qualquer crise econômica. Ao contrário do que acontece com vários Executivos estaduais, seus membros recebem seus vencimentos em dia e não são afetados quando as receitas caem e parte das verbas orçamentárias é bloqueada. E, até a imposição do teto de gastos pela Emenda Constitucional 95, que instituiu o chamado novo regime fiscal, estabelecendo uma previsão de gastos para os próximos 20 anos, o Judiciário ainda podia contar com o Executivo para cobrir seus excessos. 

Como foi divulgada no momento em que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara discute a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional da Reforma Administrativa, a nova versão do Atlas do Estado Brasileiro propiciou uma acirrada polêmica entre as corporações que integram o Judiciário. A discussão foi deflagrada pelo fato de os serventuários judiciais terem sido incluídos na reforma, enquanto os magistrados conseguiram ficar fora do alcance das mudanças, o que lhes permitirá preservar grande parte dos penduricalhos. Como a desigualdade de vencimentos no Judiciário aumentará, as entidades sindicais dos servidores judiciais não escondem sua revolta. Por seu lado, técnicos e pesquisadores do Ipea defendem, por meio de seu sindicato, não só o fim de todos os penduricalhos do Judiciário, mas, também, de vantagens moralmente injustificáveis, como os 60 dias de férias desfrutados pela magistratura. 

Esse é o mérito da nova edição do Atlas do Estado Brasileiro. Ele mostra, com números, o grau de descolamento da realidade por um Poder cuja cúpula é incapaz de perceber a crise econômica do País e de compreender que, embora os Poderes sejam independentes, o cofre é um só e a responsabilidade sobre o que dele sai e entra é do Executivo. 

Universo lulocêntrico

O Estado de S. Paulo

Causou furor a foto do encontro entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva. Em meio a reprimendas ao tucano por se deixar flagrar em confraternização com aquele que há décadas o maltrata, e também por declarar voto no petista num eventual segundo turno da eleição presidencial de 2022 muito antes do primeiro turno, especulou-se sobre as razões e os efeitos desse gesto de FHC.

Seja lá o que tenha motivado FHC a se aproximar de Lula da Silva, contudo, uma coisa é certa: a iniciativa do tucano confirma suas indiscutíveis credenciais democráticas, sua generosidade e sua fé na política civilizada como mecanismo de atenuação de discordâncias para a formulação de políticas públicas dignas do nome.

É uma pena que a recíproca não seja verdadeira, e jamais será. Se um candidato tucano aparecesse nas pesquisas como capaz de derrotar o presidente Jair Bolsonaro na eleição do ano que vem, o PT de Lula da Silva certamente se recusaria a apoiá-lo – e o demiurgo de Garanhuns nunca se deixaria fotografar ao lado de FHC ou desse candidato nem declararia voto no tucano no segundo turno, ainda mais tanto tempo antes da eleição.

Não se trata de especulação, mas de constatação a partir dos fatos. O partido de Lula da Silva trabalhou com vigor pelo impeachment de FHC em seus dois mandatos presidenciais. Qualquer pretexto era considerado válido na estratégia petista de sabotar o governo tucano, inclusive fomentar manifestações claramente golpistas. Na oposição, aliás, o lulopetismo tratou todos os governos como ilegítimos.

Uma vez no poder, Lula da Silva e seus devotos trataram de vilipendiar todos e tudo o que os havia antecedido, em especial o governo de FHC, a quem acusavam de legar ao País uma “herança maldita”. O governo do PT seria uma espécie de marco zero civilizatório, restando aos governantes anteriores contentar-se com o opróbrio da história.

Para chegar ao poder e lá se manter, o lulopetismo, sob a liderança inconteste de seu chefão, tratou de caracterizar como inimigos do “povo” todos os que não o reconheciam como movimento messiânico. Em inúmeras oportunidades, Lula da Silva referiu-se aos eleitores que não votavam no PT como “eles”, como se fossem intrusos no país perfeito que o lulopetismo pretendia construir.

Fernando Henrique Cardoso sempre foi, e continua sendo, um desses intrusos no peculiar “obreirismo” de Lula da Silva – que só se relaciona com a elite intelectual e “burguesa” e empunha as bandeiras do “proletariado” na exata medida de seus projetos pessoais de poder.

Nesse espírito, Lula da Silva nunca aceitaria a formação de uma frente democrática contra Bolsonaro que não fosse liderada por ele mesmo. Em sua concepção, somente ele seria capaz de garantir o caráter democrático e autêntico de qualquer movimento político.

E não se pense que esse lulocentrismo se manifesta apenas no caso dos tucanos e de outras forças políticas de centro. Mesmo à esquerda o lulopetismo só enxerga legitimidade popular quando os projetos são encabeçados pelo PT. O PSOL, uma das tantas dissidências petistas, que o diga.

Assim, Lula da Silva não se permitiu fotografar com FHC por desprendimento histórico, depois de tantos anos dedicando-lhe animosidade, e sim por frio cálculo político: o chefão petista exibiu a aproximação do veterano tucano como uma espécie de atestado de idoneidade e de espírito democrático, para tentar atenuar o antipetismo solidamente estabelecido entre o eleitorado.

Com sua atitude, FHC provavelmente quis enfatizar os imensos riscos que o País corre caso resolva reeleger o presidente Bolsonaro, e para isso não titubeou em estender a mão a quem jamais o respeitou como deveria. Já para Lula da Silva e os petistas, Bolsonaro é apenas a consequência do “golpe” promovido pelos inconformados com a chegada do PT ao poder; logo, evitar a vitória de Bolsonaro só faz sentido, para os petistas, se Lula voltar à Presidência.

Na famosa foto do encontro entre FHC e Lula, portanto, só há um verdadeiro democrata. 

Crise hídrica afeta inflação e põe em risco oferta de energia

Valor Econômico

Operador Nacional do Sistema alertou o governo para o risco de déficit na oferta de energia, o que põe em risco a esperada recuperação

Não estivessem todos preocupados quase que integralmente com a pandemia do novo coronavírus, a crise hídrica que está tomando vulto nas regiões Sudeste e Centro-Oeste certamente teria mais atenção das autoridades. Campanhas para economizar água já deveriam voltar ao ar. Mas como falar em economia de água quando a higiene é um dos cuidados primordiais para enfrentar a pandemia?

Quem não acompanha de perto o setor de energia certamente se surpreendeu com a decisão do Ministério de Minas e Energia de criar uma “sala de situação” para acompanhar o suprimento de energia no país, anunciada há dez dias. A medida teve justificativa forte: de setembro de 2020 a abril passado, os reservatórios das hidrelétricas das regiões Sudeste e Centro-Oeste, que representam 70% da capacidade de armazenagem de água do país, receberam o menor volume de chuvas em 90 anos, ou seja, desde que essa informação começou a ser registrada, em 1931.

Como resultado, o nível dos reservatórios dessas regiões chegou ao fim de abril com apenas 34,7% da capacidade ocupada, o menor volume desde 2015, quando o índice caiu a 33,58%, na última crise hídrica severa no país, com reflexos na energia elétrica e consequências negativas ainda não superadas. A previsão é que os reservatórios terminem maio ainda mais baixos, com 32,3% da capacidade. Se confirmado, será o pior registro desde 2001, outro ano de crise, quando foi necessário racionar a energia. A situação é especialmente preocupante porque o país já entrou no período sazonal de redução das chuvas, que se prolonga até novembro, mas está melhor nas regiões, Norte, Nordeste e Sul.

Antes mesmo da criação da sala de situação, o Ministério das Minas e Energia havia tomado outras duas iniciativas que não tiveram muito destaque, mas indicam o tamanho da crise: acionou todas as usinas térmicas disponíveis e passou a importar energia do Uruguai e da Argentina. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, negou risco de racionamento, como aconteceu em 2001, com danosas consequências no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas disse que a grave crise hídrica “vai exigir medidas excepcionais”, sem dar mais detalhes.

É crescente a oferta de energia solar e eólica, mas elas são intermitentes. Em caso de emergência, como o atual, é preciso apelar às usinas térmicas. São mais de cem integradas ao sistema, movidas a gás natural, óleo, carvão e biomassa. Elas produzem uma energia bem mais cara do que outras modalidades, ao redor de R$ 1 mil o MWh, e geralmente mais poluentes. Daí porque a medida acabou ganhando visibilidade pelo impacto na inflação. Já está em vigor a bandeira vermelha no patamar 1 e dá-se como certo que a bandeira vermelha 2 será acionada em junho. Calcula-se um aumento de 0,4 ponto na inflação em consequência dessas duas elevações de tarifas.

Deve haver impacto também no reajuste anual das distribuidoras em 2022, embora as eleições possam interferir nesse calendário. Não é demais lembrar a promessa da ex-presidente Dilma Rousseff de reduzir a conta de luz em até 20% em 2013, que se transformou em um tarifaço médio ao redor de 50% depois das eleições, em 2015, e também trouxe no pacote a famigerada MP 579, que ajudou a esgotar os reservatórios e deixou uma conta ainda hoje não saldada.

Mesmo com tarifas mais altas, problemas de abastecimento podem ocorrer. Em ofício obtido pelo Valor (17/5), o Operador Nacional do Sistema (ONS) alerta o governo para o risco de déficit na oferta de energia, o que põe em risco a esperada recuperação da economia.

A realidade é que o governo deveria ter agido antes. As coisas não acontecem de uma hora para outra. Em abril de 2020, os reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste estavam com 54,75% da capacidade. As reservas hídricas levaram algum tempo para diminuir. Pode ter havido impacto do forte aumento das queimadas no Pantanal e Amazônia. Se as térmicas tivessem sido acionadas antes, as reservas teriam sido poupadas, adiando a chegada do nível crítico.

É preciso também baratear o preço de produção das termelétricas e apostar mais nas unidades movidas a gás, o que demanda a expansão das redes de transporte. É inacreditável que ainda se reinjete gás natural dos campos do pré-sal por falta de dutos. Há ainda atrasos em 40% das usinas de produção de energia, principalmente térmicas e usinas solares, que ficariam prontas até 2026, reduzindo as alternativas de oferta.

 

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