EDITORIAIS
Caso Pazuello reforça dilema das Forças
Armadas
O Globo
As Forças Armadas enfrentam um dilema intratável, resultado de atitudes e políticas do presidente Jair Bolsonaro. De um lado, estão entre os mais privilegiados pelo atual governo. De outro, Bolsonaro insiste em desafiá-las para obter lealdade a seu projeto de poder. É nesse contexto que deve ser entendida a presença do general Eduardo Pazuello, sem máscara em plena pandemia, na manifestação de motocicletas que acompanhou Bolsonaro domingo no Rio.
Pazuello virou herói do bolsonarismo depois
dos depoimentos repletos de contradições e mentiras semana passada na CPI da
Covid. Sua presença no ato em que Bolsonaro desafiou abertamente as normas em
vigor para prevenir o contágio abriu nova crise na cúpula das Forças Armadas.
Militares da ativa — como Pazuello — são proibidos de participar de manifestações
políticas. O Alto-Comando do Exército não poderá deixar o caso sem punição. O
vice Hamilton Mourão afirmou que, antes, Pazuello deverá ir para a reserva.
Bolsonaro já entrara recentemente em choque
com o Alto-Comando no episódio que resultou na demissão do então ministro da
Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes das três forças. Naquela
ocasião, a nomeação do general Paulo Sérgio Nogueira para o comando do Exército
foi um recado, pois mostrou que Bolsonaro não tinha poder para violar as regras
que regem a sucessão.
Nogueira fora o pivô da crise, ao destacar
em entrevista que o êxito do Exército no combate à Covid-19 derivava de
diretrizes antagônicas às que Bolsonaro pregava — e que Pazuello tentava
implantar no Ministério da Saúde. O objetivo da entrevista era tentar limpar a
imagem dos militares, contaminada pela presença de Pazuello no governo e pela
gestão desastrosa da pandemia.
Depois da crise, Bolsonaro continuou
falando em “meu Exército”. Suas declarações de teor golpista saíram há muito do
terreno das insinuações. Aparecer ao lado de um general da ativa, que violou
uma lei básica da caserna para lhe prestar lealdade, é outra forma de exercer
pressão sobre a cúpula das Forças Armadas, mais um desafio a uma instituição
basilar da democracia.
Ao mesmo tempo, as benesses concedidas aos militares desde que Bolsonaro tomou posse são inequívocas. Tratamento semelhante é dado apenas à polícia e às demais forças de segurança. Para tais carreiras, o Ministério da Economia não parece impor restrição fiscal de nenhuma natureza. Enquanto o gasto com servidores civis cresceu no ano passado 1,3% em relação a 2019, a despesa com militares subiu 7,3%.
Na reforma da Previdência, militares foram
beneficiados com uma reestruturação de carreira que, por enquanto, resultou em
aumento de R$ 5,6 bilhões nas despesas, ou 17% acima do previsto, segundo
revelou reportagem do GLOBO. Para não falar na última regalia: uma portaria
baixada pelo Ministério da Economia feita sob medida para os militares da
reserva, que permite acumular dois salários recebidos do Estado,
independentemente de o total violar o teto constitucional.
Bolsonaro tenta de todas as formas fazer
com que as Forças Armadas se curvem a seus desígnios. Mais uma vez, elas
precisam repetir o que têm feito e demonstrar que conhecem perfeitamente seu
papel na democracia. Mais uma vez, precisam resistir aos ímpetos autoritários
de Bolsonaro, que só é comandante em chefe enquanto durar seu mandato.
Fidelidade ideológica conta mais que
competência para Bolsonaro
O Globo
O discurso de apresentação da médica Luana Araújo, anunciada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para assumir a Secretaria de Enfrentamento à Covid-19, parecia um ponto fora da curva num governo em que o presidente Jair Bolsonaro cultua o negacionismo, manda às favas os protocolos sanitários e defende o uso de remédios ineficazes contra a doença. Nem as paredes do Planalto devem ter ficado indiferentes quando Luana anunciou um trabalho “pautado nas evidências científicas”.
Engano. Dez dias depois de anunciada, Luana
Araújo, formada pela UFRJ e pós-graduada em infectologia na Universidade Johns
Hopkins, saiu de modo tão surpreendente quanto entrou. Motivo? Só a CPI da
Covid poderá esclarecer. Queiroga se limitou a dizer que ela não assumiria mais
o cargo e que o ministério buscaria outro profissional “com perfil semelhante”.
A ex-futura secretária não deu detalhes
sobre a saída, mas divulgou uma nota que fornece pistas: “Fiz questão de
evidenciar minha postura técnica, baseada em evidências, pautada pelo juramento
médico que fiz e que norteia todas as minhas atitudes”. Suas posições eram
conhecidas. Criticou o “tratamento precoce” com uso de drogas ineficazes, a que
se referiu como “neocuranderismo”, e disse numa rede social que o Brasil estava
“na vanguarda da estupidez mundial” .
Luana, que ainda não fora nomeada, é mais
um nome que se inscreve numa extensa galeria. No próprio Ministério da Saúde,
os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich deixaram o cargo por
discordar dos desvarios de Bolsonaro, como sua obsessão pela cloroquina. A
indicação da médica Ludhmila Hajjar, cotada para substituir Eduardo Pazuello,
foi torpedeada por bolsonaristas devido a posições a favor do lockdown e contra
as bizarrices do chefe da nação.
O presidente do Inpe, Ricardo Galvão, foi
demitido porque os dados sobre desmatamento não agradavam a Bolsonaro. No Inep,
a pressão ideológica tem levado à perda de quadros técnicos. A exoneração da
pedagoga Sueli Macedo Silveira, coordenadora-geral de Avaliação dos Cursos de
Graduação e Instituições de Ensino Superior, em abril, causou uma debandada de
profissionais que não rezavam pela cartilha imposta pelo ministro da Educação,
pastor Milton Ribeiro. Sueli foi substituída por uma médica-veterinária.
Todas essas decisões mostram que, para
Bolsonaro, fidelidade ideológica conta mais que competência — e o cambaleante
ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é prova disso. A substituição do
general Pazuello — após gestão desastrosa na Saúde — por Queiroga trouxe a
esperança de uma mudança de rumo no ministério que tem a missão de combater a
pandemia que já matou mais de 450 mil brasileiros. Mas percebe-se que a
autonomia alegada pelo ministro tem limites — os impostos pelas crendices de
Bolsonaro. A despeito das boas intenções de Queiroga de dar um perfil mais
técnico ao ministério e devolvê-lo aos braços da Ciência, o fantasma do
“neocurandeirismo” ainda assombra o Planalto.
General no palanque
Folha de S. Paulo
Presença de Pazuello em ato com Bolsonaro é
transgressão e não pode ficar impune
Não é fácil encontrar precedente da
presença de um general de divisão da ativa num ato político-partidário no
Brasil. Sob a Constituição de 1988, a presepada de
que tomou parte Eduardo Pazuello neste domingo (23), no Rio, é
inaudita.
Dava-se na capital fluminense mais uma
demonstração de alheamento da realidade patrocinada pelo presidente Jair
Bolsonaro. Nessa versão rasteira de “O Selvagem da Motocicleta”, uma turma de
arruaceiros em suas máquinas ruidosas estimula a aglomeração e despreza as
máscaras durante uma pandemia que matou 450 mil pessoas.
É espantoso que outras autoridades locais
não sigam o exemplo do governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), que
multou Bolsonaro por afrontar as regras de cautela sanitária vigentes, durante
passagem da fanfarra presidencial pelo estado na sexta (21).
Dois dias depois, no Rio de Janeiro, as
transgressões não se restringiram ao domínio da saúde pública. O palanque do
presidente da República exibia o general Pazuello —sem proteção facial, como já
vai se tornando habitual nas aparições do ex-ministro da Saúde.
Foi demais até para o elevadíssimo grau de
confusão entre a caserna e o governo civil fomentado pela administração
Bolsonaro. Militares da ativa, caso de Pazuello, não podem
participar de manifestações de cunho político-partidário.
As motivações do veto remontam ao próprio
advento dos regimes republicanos. Quem está investido das armas e da autoridade
para defender a nação de agressões externas não disputa o poder político, do
contrário o sistema degenera para a guerra civil ou a ditadura.
O princípio da hierarquia e o comando das
Forças Armadas também se veem desafiados quando um general subordinado resolve
fazer demagogia palanqueira. Sargentos, tenentes, capitães, majores e coronéis
também poderiam ficar tentados a demonstrar suas preferências partidárias, o
que instalaria a balbúrdia entre os militares.
Por essas razões, o Regulamento
Disciplinar do Exército decretado em 2002 relaciona
expressamente entre as transgressões o ato de “manifestar-se, publicamente, o
militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza
político-partidária”.
Por isso a indisciplina do general Eduardo
Pazuello não deveria passar sem a devida punição por parte do comando do
Exército, sob pena de acumular-se mais uma nódoa —esta particularmente grave
pelo precedente que estabeleceria— na imagem da corporação sob os auspícios de
Jair Bolsonaro.
Já basta o desserviço que a fracassada
passagem do general pela Saúde, em meio à crise ciclópica, e suas mentiras à
CPI da pandemia prestaram à instituição militar.
Tem jeito
Folha de S. Paulo
Convicção nacional sobre chances do país
encontra amparo na experiência global
A uma pergunta simples e direta —o Brasil
tem jeito?— formulada pelo Datafolha, 90% dos
brasileiros responderam afirmativamente, um percentual que pode
parecer surpreendente.
Afinal, o país se tornou mais pobre nos
últimos dez anos, com queda de sua renda média por habitante, e desde os
protestos populares de 2013 tem mostrado elevado grau de descontentamento com
seus governantes. Neste momento, vive o impacto devastador da pandemia em meio
a grave desemprego e alta da inflação dos alimentos.
“Ter
jeito” decerto significa coisas diferentes para os entrevistados, conforme suas
crenças, preferências e ambições. As convicções muito provavelmente seriam
menores se a questão apresentasse alguma meta específica e um prazo para seu
cumprimento.
Há tentativas de aferir de modo objetivo o
sucesso e o progresso dos países, nenhuma delas plenamente satisfatória. Uma
das mais conhecidas é o Índice de Desenvolvimento Humano, calculado pela ONU a
partir dos indicadores principais de riqueza material, escolaridade e
expectativa de vida.
Nessa medida, o Brasil apresenta o 84º melhor
desempenho entre 189 países e lenta melhora nas últimas
décadas. Seu IDH de 0,765 (numa escala de 0 a 1) o coloca em uma espécie de classe
média alta global, o que dá argumentos aos que preferem ver o copo meio cheio.
Trata-se, contudo, de um índice
questionável e incompleto. Seus autores, não por acaso, buscam incorporar ao
cálculo elementos como a desigualdade social e a situação ambiental —como
poderiam levar em conta a segurança pública ou as liberdades democráticas.
A farta literatura sobre o desenvolvimento
das nações tampouco dispõe de muitas certezas. Pode-se dizer, no entanto, que o
Brasil serve de exemplo nos estudos sobre as muitas dificuldades envolvidas em
deixar o grupo da renda média e ingressar no mundo rico —e esse é o copo meio
vazio.
A história demonstra, de todo modo, que não
existe fatalismo na evolução dos países. Uns avançam mais rapidamente que os
demais, como no caso recente da Coreia do Sul, alguns entram em declínio
relativo, como a Argentina, outros colapsam, como a Venezuela.
Perdoe-se o truísmo, tudo depende das
escolhas de cada sociedade e, também, de alguma sorte. A resposta dos
brasileiros, pois, está correta, o que não significa que o Brasil esteja fadado
a dar certo.
Inflação mais desemprego
O Estado de S. Paulo
Inflação esfola o trabalhador, o desemprego o esmaga. Esses dois infortúnios só raramente ocorrem ao mesmo tempo – e juntá-los tem sido um dos feitos memoráveis do atual governo. Enquanto o presidente passeia sem máscara, provoca ajuntamentos e comanda desfiles a cavalo ou de motocicletas, como se houvesse algo para celebrar, dezenas de milhões de brasileiros enfrentam as durezas da ocupação escassa, do dinheiro curto e do aumento do custo de vida. A inflação ficará acima da meta neste ano e no próximo, segundo as últimas projeções, e, pior que isso, poderá estourar em 2021 o limite de tolerância – de 5,25% – fixado pelas autoridades.
Passado o primeiro choque da pandemia, a
atividade econômica voltou a crescer, embora em ritmo ainda insuficiente para
zerar o recuo do ano passado. A desocupação permanece elevada e o custo de
sobrevivência das famílias, já em alta sensível nos meses finais de 2020, continua
avançando. Mesmo
com algum recuo no segundo semestre, a inflação oficial, medida pelo Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), poderá fechar o ano com alta
acumulada de 5,3%, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
vinculado ao Ministério da Economia. No mercado, a mediana das
projeções aponta 5,24% para este ano, taxa bem superior à meta (3,75%) e muito
próxima do limite superior de tolerância, de acordo com a pesquisa Focus,
do Banco Central (BC).
A mesma pesquisa registra, com base num
grupo menor de instituições, uma projeção mais atualizada: 5,36%. Para 2022 o
relatório indica uma alta de preços – de 3,67% – superior ao centro da meta,
fixado em 3,5%. Só em 2023 o aumento do IPCA deverá voltar ao centro do alvo,
de 3,25%, mas essa previsão está longe de ser tranquilizante. As pressões
continuarão fortes e, se nada tornar o quadro mais complicado, a alta de preços
baterá na meta. Uma folga significativa no ritmo da inflação parece improvável,
num ambiente de incerteza e dólar instável.
A novidade mais favorável no front
inflacionário é um certo arrefecimento dos custos da comida – à primeira vista,
uma bênção para os pobres. Nos 12 meses até abril os preços de alimentos
consumidos em casa aumentaram 15,5%, 3,6 pontos porcentuais a menos que no
período até janeiro. Mas esse grupo permaneceu, como observam os autores do
estudo do Ipea, como principal foco de pressão inflacionária. Excluído o
impacto dos preços dos alimentos, a inflação nos 12 meses até abril caiu de
6,76% para 5,34%. Mas o quadro muda quando se observam certos detalhes.
No caso da comida, o arrefecimento pode ter
sido passageiro. Além disso, os novos aumentos, mesmo quando mais moderados,
ocorrem sobre uma base muito elevada, sem proporcionar de fato um alívio. Além
disso, os aumentos de preços monitorados, como os de eletricidade e gás, também
complicam severamente a situação das famílias pobres. Não basta pôr algum
alimento na panela. É preciso ter meios para cozinhá-lo. Todos esses problemas
se tornam mais graves quando afetam pessoas desocupadas, sem renda ou com renda
comprimida.
Os últimos números do desemprego são do
trimestre dezembro-fevereiro. Nesse período havia 14,4 milhões de
desempregados, equivalentes a 14,4% da força de trabalho. Nenhuma informação
dos meses seguintes sugere mudança significativa nas condições de emprego. Se
tiver ocorrido alguma melhora, deve ter sido muito moderada, a julgar pelas
condições fracas do consumo e da atividade na indústria e no setor de serviços.
Também quanto a esse ponto a situação brasileira é uma das piores, quando se
observam as economias emergentes e as desenvolvidas.
Nos 37 países da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a inflação nos 12 meses até março
estava em 2,4%. Na União Europeia havia chegado a 1,7%. Nos Estados Unidos
havia atingido 2,6%. No Brasil havia batido em 6,1%. Na OCDE, em março, o
desemprego médio havia recuado para 6,5%. Nenhum chefe de governo dos países
desse grupo foi filmado em aglomerações ou comandando um desfile de
motociclistas.
O novo ‘Atlas do Estado Brasileiro’
O Estado de S. Paulo
Elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base em dados de 2019, a nova edição do Atlas do Estado Brasileiro revela que o Judiciário continua exorbitando em matéria de gastos com folha de pagamento de magistrados e serventuários judiciais. Ao todo, o Judiciário é composto por 91 tribunais e, em suas diferentes instâncias e braços especializados, a média salarial é a maior dos Três Poderes.
Na esfera estadual, por exemplo, o salário
médio dos juízes e servidores dos Tribunais de Justiça era de R$ 10,2 mil, em
2019 – mais do que o dobro do que a média salarial do funcionalismo do
Executivo, que é de R$ 4,8 mil. Na esfera federal, o salário médio da
magistratura e dos serventuários dos tribunais mantidos pela União era de R$
15,3 mil, em 2019, ante R$ 9,4 mil no Executivo. As mesmas diferenças também
foram registradas no Poder Legislativo. No âmbito estadual, o salário médio nas
Assembleias era de R$ 7,7 mil, enquanto na Câmara dos Deputados e no Senado ele
foi de R$ 9,3 mil.
Além das diferenças entre as médias
salariais, o estudo do Ipea revela que no Judiciário há maior concentração de
servidores com remuneração elevada. Nos tribunais federais, 48,77% dos
serventuários recebem acima de R$ 15 mil por mês, ante 18,59% no Executivo
federal e 21,35% na Câmara e no Senado. Nos Estados, 16,45% dos servidores dos
Tribunais de Justiça ganham acima de R$ 15 mil, enquanto no Executivo essa
proporção é de 3,36% e no Legislativo, de 15,75%.
Esses valores dizem respeito apenas aos
salários brutos. Eles não incluem os penduricalhos, como são chamados os expedientes
concebidos pelas corporações judiciais com o objetivo de burlar o teto
remuneratório do funcionalismo estabelecido pela Constituição, que são pagos a
título de auxílio para moradia, transporte, saúde, bonificações, gratificações
e uma infinidade de benefícios retroativos assegurados por decisões judiciais.
Ou seja, por decisões tomadas pelos próprios beneficiários.
Como esses penduricalhos são pagos a título
de verba indenizatória, e não como vencimentos, seus valores não são
considerados no cálculo do teto salarial estabelecido pela Constituição para o
funcionalismo, que hoje é de R$ 39,2 mil. Além de pagar vencimentos mais altos,
o Judiciário fica a salvo de qualquer crise econômica. Ao contrário do que
acontece com vários Executivos estaduais, seus membros recebem seus vencimentos
em dia e não são afetados quando as receitas caem e parte das verbas
orçamentárias é bloqueada. E, até a imposição do teto de gastos pela Emenda
Constitucional 95, que instituiu o chamado novo regime fiscal, estabelecendo
uma previsão de gastos para os próximos 20 anos, o Judiciário ainda podia
contar com o Executivo para cobrir seus excessos.
Como foi divulgada no momento em que a
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara discute a admissibilidade da
Proposta de Emenda Constitucional da Reforma Administrativa, a nova versão
do Atlas do Estado Brasileiro propiciou uma acirrada polêmica entre
as corporações que integram o Judiciário. A discussão foi deflagrada pelo fato
de os serventuários judiciais terem sido incluídos na reforma, enquanto os
magistrados conseguiram ficar fora do alcance das mudanças, o que lhes
permitirá preservar grande parte dos penduricalhos. Como a desigualdade de
vencimentos no Judiciário aumentará, as entidades sindicais dos servidores
judiciais não escondem sua revolta. Por seu lado, técnicos e pesquisadores do
Ipea defendem, por meio de seu sindicato, não só o fim de todos os
penduricalhos do Judiciário, mas, também, de vantagens moralmente
injustificáveis, como os 60 dias de férias desfrutados pela magistratura.
Esse é o mérito da nova edição
do Atlas do Estado Brasileiro. Ele mostra, com números, o grau de
descolamento da realidade por um Poder cuja cúpula é incapaz de perceber a
crise econômica do País e de compreender que, embora os Poderes sejam
independentes, o cofre é um só e a responsabilidade sobre o que dele sai e
entra é do Executivo.
Universo lulocêntrico
O Estado de S. Paulo
Causou furor a foto do encontro entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva. Em meio a reprimendas ao tucano por se deixar flagrar em confraternização com aquele que há décadas o maltrata, e também por declarar voto no petista num eventual segundo turno da eleição presidencial de 2022 muito antes do primeiro turno, especulou-se sobre as razões e os efeitos desse gesto de FHC.
Seja lá o que tenha motivado FHC a se
aproximar de Lula da Silva, contudo, uma coisa é certa: a iniciativa do tucano
confirma suas indiscutíveis credenciais democráticas, sua generosidade e sua fé
na política civilizada como mecanismo de atenuação de discordâncias para a
formulação de políticas públicas dignas do nome.
É uma pena que a recíproca não seja
verdadeira, e jamais será. Se um candidato tucano aparecesse nas pesquisas como
capaz de derrotar o presidente Jair Bolsonaro na eleição do ano que vem, o PT
de Lula da Silva certamente se recusaria a apoiá-lo – e o demiurgo de Garanhuns
nunca se deixaria fotografar ao lado de FHC ou desse candidato nem declararia
voto no tucano no segundo turno, ainda mais tanto tempo antes da eleição.
Não se trata de especulação, mas de
constatação a partir dos fatos. O partido de Lula da Silva trabalhou com vigor
pelo impeachment de FHC em seus dois mandatos presidenciais. Qualquer pretexto
era considerado válido na estratégia petista de sabotar o governo tucano,
inclusive fomentar manifestações claramente golpistas. Na oposição, aliás, o
lulopetismo tratou todos os governos como ilegítimos.
Uma vez no poder, Lula da Silva e seus
devotos trataram de vilipendiar todos e tudo o que os havia antecedido, em
especial o governo de FHC, a quem acusavam de legar ao País uma “herança
maldita”. O governo do PT seria uma espécie de marco zero civilizatório,
restando aos governantes anteriores contentar-se com o opróbrio da história.
Para chegar ao poder e lá se manter, o
lulopetismo, sob a liderança inconteste de seu chefão, tratou de caracterizar
como inimigos do “povo” todos os que não o reconheciam como movimento
messiânico. Em inúmeras oportunidades, Lula da Silva referiu-se aos eleitores
que não votavam no PT como “eles”, como se fossem intrusos no país perfeito que
o lulopetismo pretendia construir.
Fernando Henrique Cardoso sempre foi, e
continua sendo, um desses intrusos no peculiar “obreirismo” de Lula da Silva –
que só se relaciona com a elite intelectual e “burguesa” e empunha as bandeiras
do “proletariado” na exata medida de seus projetos pessoais de poder.
Nesse espírito, Lula da Silva nunca
aceitaria a formação de uma frente democrática contra Bolsonaro que não fosse
liderada por ele mesmo. Em sua concepção, somente ele seria capaz de garantir o
caráter democrático e autêntico de qualquer movimento político.
E não se pense que esse lulocentrismo se
manifesta apenas no caso dos tucanos e de outras forças políticas de centro.
Mesmo à esquerda o lulopetismo só enxerga legitimidade popular quando os
projetos são encabeçados pelo PT. O PSOL, uma das tantas dissidências petistas,
que o diga.
Assim, Lula da Silva não se permitiu
fotografar com FHC por desprendimento histórico, depois de tantos anos
dedicando-lhe animosidade, e sim por frio cálculo político: o chefão petista
exibiu a aproximação do veterano tucano como uma espécie de atestado de
idoneidade e de espírito democrático, para tentar atenuar o antipetismo
solidamente estabelecido entre o eleitorado.
Com sua atitude, FHC provavelmente quis
enfatizar os imensos riscos que o País corre caso resolva reeleger o presidente
Bolsonaro, e para isso não titubeou em estender a mão a quem jamais o respeitou
como deveria. Já para Lula da Silva e os petistas, Bolsonaro é apenas a
consequência do “golpe” promovido pelos inconformados com a chegada do PT ao
poder; logo, evitar a vitória de Bolsonaro só faz sentido, para os petistas, se
Lula voltar à Presidência.
Na famosa foto do encontro entre FHC e Lula,
portanto, só há um verdadeiro democrata.
Crise hídrica afeta inflação e põe em risco oferta de energia
Valor Econômico
Operador Nacional do Sistema alertou o
governo para o risco de déficit na oferta de energia, o que põe em risco a
esperada recuperação
Não estivessem todos preocupados quase que
integralmente com a pandemia do novo coronavírus, a crise hídrica que está
tomando vulto nas regiões Sudeste e Centro-Oeste certamente teria mais atenção
das autoridades. Campanhas para economizar água já deveriam voltar ao ar. Mas
como falar em economia de água quando a higiene é um dos cuidados primordiais
para enfrentar a pandemia?
Quem não acompanha de perto o setor de
energia certamente se surpreendeu com a decisão do Ministério de Minas e
Energia de criar uma “sala de situação” para acompanhar o suprimento de energia
no país, anunciada há dez dias. A medida teve justificativa forte: de setembro
de 2020 a abril passado, os reservatórios das hidrelétricas das regiões Sudeste
e Centro-Oeste, que representam 70% da capacidade de armazenagem de água do
país, receberam o menor volume de chuvas em 90 anos, ou seja, desde que essa
informação começou a ser registrada, em 1931.
Como resultado, o nível dos reservatórios
dessas regiões chegou ao fim de abril com apenas 34,7% da capacidade ocupada, o
menor volume desde 2015, quando o índice caiu a 33,58%, na última crise hídrica
severa no país, com reflexos na energia elétrica e consequências negativas
ainda não superadas. A previsão é que os reservatórios terminem maio ainda mais
baixos, com 32,3% da capacidade. Se confirmado, será o pior registro desde
2001, outro ano de crise, quando foi necessário racionar a energia. A situação
é especialmente preocupante porque o país já entrou no período sazonal de
redução das chuvas, que se prolonga até novembro, mas está melhor nas regiões,
Norte, Nordeste e Sul.
Antes mesmo da criação da sala de situação,
o Ministério das Minas e Energia havia tomado outras duas iniciativas que não
tiveram muito destaque, mas indicam o tamanho da crise: acionou todas as usinas
térmicas disponíveis e passou a importar energia do Uruguai e da Argentina. O
ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, negou risco de racionamento,
como aconteceu em 2001, com danosas consequências no governo de Fernando
Henrique Cardoso, mas disse que a grave crise hídrica “vai exigir medidas
excepcionais”, sem dar mais detalhes.
É crescente a oferta de energia solar e
eólica, mas elas são intermitentes. Em caso de emergência, como o atual, é preciso
apelar às usinas térmicas. São mais de cem integradas ao sistema, movidas a gás
natural, óleo, carvão e biomassa. Elas produzem uma energia bem mais cara do
que outras modalidades, ao redor de R$ 1 mil o MWh, e geralmente mais
poluentes. Daí porque a medida acabou ganhando visibilidade pelo impacto na
inflação. Já está em vigor a bandeira vermelha no patamar 1 e dá-se como certo
que a bandeira vermelha 2 será acionada em junho. Calcula-se um aumento de 0,4
ponto na inflação em consequência dessas duas elevações de tarifas.
Deve haver impacto também no reajuste anual
das distribuidoras em 2022, embora as eleições possam interferir nesse
calendário. Não é demais lembrar a promessa da ex-presidente Dilma Rousseff de
reduzir a conta de luz em até 20% em 2013, que se transformou em um tarifaço
médio ao redor de 50% depois das eleições, em 2015, e também trouxe no pacote a
famigerada MP 579, que ajudou a esgotar os reservatórios e deixou uma conta
ainda hoje não saldada.
Mesmo com tarifas mais altas, problemas de
abastecimento podem ocorrer. Em ofício obtido pelo Valor (17/5), o Operador
Nacional do Sistema (ONS) alerta o governo para o risco de déficit na oferta de
energia, o que põe em risco a esperada recuperação da economia.
A realidade é que o governo deveria ter
agido antes. As coisas não acontecem de uma hora para outra. Em abril de 2020,
os reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste estavam com 54,75% da
capacidade. As reservas hídricas levaram algum tempo para diminuir. Pode ter
havido impacto do forte aumento das queimadas no Pantanal e Amazônia. Se as
térmicas tivessem sido acionadas antes, as reservas teriam sido poupadas,
adiando a chegada do nível crítico.
É preciso também baratear o preço de
produção das termelétricas e apostar mais nas unidades movidas a gás, o que
demanda a expansão das redes de transporte. É inacreditável que ainda se
reinjete gás natural dos campos do pré-sal por falta de dutos. Há ainda atrasos
em 40% das usinas de produção de energia, principalmente térmicas e usinas solares,
que ficariam prontas até 2026, reduzindo as alternativas de oferta.
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