- Folha de S. Paulo
Ciclo eleitoral é nova ronda pelos caminhos
tantas vezes trilhados no continente
Alejo Carpentier (1904-1980) escreveu que a
América Latina é a terra das impossibilidades infinitas. O ciclo eleitoral em
que se inscreve a vitória
de Pedro Castillo no Peru pode ser classificado, em registro vulgar,
como uma onda de esquerda. Mais apropriado, porém, é qualificá-lo como uma nova
ronda pelos caminhos tantas vezes trilhados de um labirinto implacável.
"Ventos
democráticos começam a soprar nas Américas", tascou Carlos Lupi,
presidente do PDT, referindo-se aos triunfos de Biden e de Castillo como se
houvesse paralelo viável. O peruano, cujo partido se define um tanto
ridiculamente como marxista, quer fechar o Tribunal Constitucional e, por meio
de uma Constituinte, instalar um Estado "interventor, planificador,
inovador, empresário e protetor". Mas isso é a epiderme: no regime com que
sonha, a vida social se curvaria a dogmas religiosos conservadores. Democracia?
"Vemos com muita alegria, com ares
positivos para a nossa América Latina. Ele é trabalhador, com posições
progressistas", celebrou Gleisi
Hoffmann, presidente do PT. Castillo representa uma reação camponesa ao
Peru urbano. Seria um equívoco, contudo, interpretar tal reação nos termos
binários do choque entre "atraso" e "modernidade". A figura
que governará o Peru sintetiza a modernização do atraso promovida por uma
mistura pegajosa de neopentecostalismo com catolicismo fundamentalista.
Progressista?
A "nossa América Latina" é uma invenção recente, fundada pelo panlatinismo imperial francês da segunda metade do século 19, e refundada diversas vezes. No Peru, surgiu a mais densa dessas refundações: a ideia de Indo-América, expressa em versão anti-imperialista, por Haya de la Torre, ou marxista, por José Carlos Mariátegui.
Um século atrás, os dois líderes políticos
procuravam, de modos diferentes, conectar-se a correntes ideológicas
cosmopolitas. Hoje, tanto tempo depois, as sentenças primitivas que emanam de
Castillo evidenciam a esterilização do pensamento de esquerda latino-americano.
Castillo dirigiu uma "ronda
campesina", isto é, uma milícia rural. Seu discurso reproduz,
fragmentariamente, os manifestos do Sendero Luminoso, o grupo guerrilheiro
autodeclarado maoista cujas peripécias violentas abriram caminho à ascensão do
fujimorismo. A
reiteração eleitoral da polaridade anuncia um ciclo de violência. Quantas
vezes a história terá que ser repetida?
A eleição peruana traz dois fenômenos
dignos de nota, com implicações mais gerais. O primeiro é a própria recepção da
vitória de Castillo na esquerda brasileira. O entusiasmo de Hoffmann e de Lupi
não indica uma adesão do PT ou do PDT ao conservadorismo social do novo
presidente do Peru, mas uma renitente abdicação dos princípios democráticos
elementares. Eles nada aprenderam com a catástrofe chavista na Venezuela.
"Cada país, sua realidade; cada povo,
seu governo. Então faço questão de defender a autodeterminação de cada
povo." Alice Portugal, deputada do PC do B, não exprime nem mesmo os
reparos periféricos de Lupi ou Hoffmann diante das posições extremadas de
Castillo. A "autodeterminação de cada povo" é a justificativa típica
das tiranias, que serve igualmente à China e à Arábia Saudita, a Castro e
Pinochet.
Bolsonaro poderia usá-la, com igual
propriedade, para justificar a ditadura militar no Brasil.
Castillo teve menos de 19% dos votos no primeiro turno, contra 13% de Keiko Fujimori. Venceu por exclusão: pela justa repulsa que o nome Fujimori provoca no país. O segundo fenômeno notável é a impotência política das correntes democráticas peruanas, incapazes de dialogar com os dois terços dos eleitores que não votaram nem na herdeira do fujimorismo nem no aspirante a ditador de aldeia. Isso, e não alguma essência misteriosa, étnica ou cultural, talvez seja a marca distintiva da América Latina: o nosso labirinto.
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