- O Globo
São bastante conhecidas as acepções da
expressão “pessoa de bem” nos meios conservadores. A expressão alude a uma
pessoa proba, trabalhadora e de família. Define-se por oposição ao “vagabundo”,
o marginal, o sem-trabalho e sem-família. As pessoas “de bem”, nesse sentido,
são aquelas que a sociedade e o Estado devem considerar e proteger; e os
demais, que se desviaram da rota por indisciplina ou por falta de caráter,
devem ser punidos. O que frequentemente não notamos, porém, é que a esquerda
também tem seus “homens de bem”.
A distinção valorativa entre os “de bem” e
os “vagabundos” é essencial para explicar a dualidade de tratamento que os
conservadores impõem a certas pessoas.
Ela explica por que os conservadores não condenaram a incursão violenta da Polícia Civil no Jacarezinho, que estaria tomado e controlado por vagabundos. Explica também por que, na CPI, o senador Flávio Bolsonaro se indignou com a possibilidade de Fabio Wajngarten, um “homem de bem”, receber voz de prisão de Renan Calheiros, um “vagabundo”.
No mundo conservador, é o caráter, ou
melhor, a aparência de um certo tipo de caráter, que distingue o “homem de bem”
do “vagabundo”. Na esquerda, é o posicionamento ideológico, ou melhor, a
aparência de posicionamento ideológico, que separa as pessoas “conscientizadas”
das pessoas com “posições equivocadas” — as primeiras devem ser consideradas;
as segundas, condenadas.
As pessoas com “posições equivocadas” não
são dignas de consideração. Se erram, ainda que de boa-fé, devem ser
denunciadas e expostas no tribunal da opinião pública, e o ato de denúncia
conferirá prestígio e virtude ao denunciante.
É o que aconteceu no já bastante comentado
episódio em que Juliana Paes — ao pedir, no Instagram, um pouco mais de nuance
no debate público — foi atacada por usar a expressão “delírio comunista” em uma
referência ao PT. A desproporção entre o tamanho do “erro” de Juliana e a
dureza da sua condenação no tribunal das redes lembra a dureza de tratamento e
a falta de consideração dos conservadores pelos “vagabundos”.
Obviamente, não são equivalentes a execução
extrajudicial e os assassinatos de reputação. Mas o fato de não serem
equivalentes no tamanho do dano que causam não significa que não tenham a mesma
forma, nem que não se retroalimentem. Afinal, o fervor do “homem de bem” contra
os “vagabundos comunistas” alimenta a indignação do “conscientizado” contra os
“fascistas” — e vice-versa.
Há ainda um problema adicional. A falta de
consideração da esquerda pelas pessoas “não conscientizadas” pode ter efeitos
eleitorais. Não será suficiente, em outubro de 2022, convidá-las para comer um
bolo e conversar num vira-voto depois de passar quatro anos chamando-as de
fascistas.
O desafio político que vivemos não pode ser
superado alimentando a divisão dicotômica entre as pessoas que prestam e as que
não prestam. De alguma maneira, precisamos recuperar o respeito mútuo, a
tolerância política e o sentimento de que, a despeito das diferenças, pertencemos
a uma mesma comunidade política.
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