EDITORIAIS
Indiferença com o futuro do País
O Estado de S. Paulo
De forma escancarada, Jair Bolsonaro tem
mostrado que, em suas decisões, o médio e o longo prazos não têm nenhum peso. O
que importa é ser reeleito
Sem nenhum pudor, o governo Bolsonaro é cada vez mais uma administração orientada exclusivamente ao circunstancial, ao imediato. Não se vê mais sequer a pretensão de manifestar alguma preocupação com o futuro. De forma escancarada, Jair Bolsonaro tem mostrado que, em suas decisões, o médio e o longo prazos não têm nenhum peso.
Em primeiro lugar, chama a atenção que, em
todas as negociações com o Poder Legislativo, o Executivo federal não apresenta
nenhuma preocupação com uma agenda estrutural para o País.
É de fato estranho. Um governo que foi eleito
prometendo revolucionar o cenário econômico e o ambiente de negócios e promover
uma nova forma de fazer política faz agora inúmeras concessões ao Centrão sem
pedir nada em troca. Não almeja nenhuma reforma. Contenta-se com que o Centrão
lhe conceda sobrevivência política.
Além de não trabalhar pelas reformas, o
governo Bolsonaro ainda dificulta as que poderiam ser aprovadas. O caso da
reforma tributária é acintoso. O Congresso tinha a possibilidade, como há muito
tempo não se via, de aprovar um novo marco tributário, a partir das propostas
da Câmara (formuladas pelo economista Bernard Appy) e do Senado (de autoria do
ex-deputado Luiz Carlos Hauly).
No entanto, o governo de Jair Bolsonaro não
apoiou nenhum dos dois projetos, tampouco trabalhou por eventual melhoria dos
textos. Seu interesse tem se resumido a criar um novo imposto a partir da união
do PIS/Cofins e a falar de uma nova CPMF. Haja estreiteza de horizontes.
A indiferença com o futuro do País é também constatada pelo desmonte que o governo federal vem realizando em áreas que incidem diretamente sobre as novas gerações, em especial, educação, ciência e meio ambiente.
Esse assunto é especialmente triste, pois
não se trata apenas de não avançar – o que, por si só, já é grave, tendo em
vista as difíceis condições atuais. O governo de Jair Bolsonaro tem promovido o
retrocesso por vários meios: desorganização de políticas públicas, perseguição
a funcionários públicos e professores, aparelhamento ideológico de órgãos
públicos, corte de verbas em áreas essenciais para o País e um contínuo
desmonte dos órgãos e mecanismos de controle, especialmente na área ambiental.
Em abril, por exemplo, uma instrução
normativa conjunta do Ministério do Meio Ambiente, Ibama e ICMBio passou a
exigir autorização de um superior do agente de fiscalização para a aplicação de
multa. Sem constar do sistema de consolidação das multas, a nova instância de
avaliação dos processos levou à paralisação das emissões de multas do Ibama e
do ICMBio.
Já preocupante, o quadro piora cada vez mais.
No mês seguinte, foi deflagrada operação que investiga o próprio ministro do
Meio Ambiente por suspeita de colaborar com o desmatamento ilegal. Como se não
bastasse, logo após a divulgação da investigação, o presidente Jair Bolsonaro
reiterou sua concordância com a gestão da pasta ambiental. Num governo assim,
não há espaço para preocupação com o futuro comum da população.
É de notar também que, mais recentemente, o
descompromisso com o futuro adquiriu um novo patamar de descaramento. Em
diversos meios, membros do governo e parlamentares governistas têm afirmado que
o presidente Jair Bolsonaro não deve se preocupar com o “mau momento” do País
(em especial, pandemia, desemprego e inflação) e a piora de seus índices de
aprovação, pois até 2022 a economia vai melhorar e, de acordo com esses
apoiadores do governo, isso será suficiente para a reeleição de Jair Bolsonaro.
Ainda que seja bastante frágil – é um
conjunto de meros prognósticos –, o argumento expõe a face brutal do governo
Bolsonaro. Não há nenhuma aspiração em prover condições para um futuro melhor
para o País. Não há nenhuma pretensão de realizar um governo responsável. A
exclusiva preocupação são as eleições de 2022.
É o descaramento total. Com todas as
letras, o governo diz que o único que importa é Jair Bolsonaro ser reeleito. O
restante é mero detalhe, que não merece nenhuma atenção, nenhum cuidado.
A escolha do ministro da Saúde
O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro não gosta de ser contraditado com fatos e declarações que inviabilizem a sustentação das mentiras que propaga a torto e a direito para servir a seus interesses particulares. Se o mundo real não dá respaldo à “narrativa política” do presidente da República, paciência, tanto pior para a realidade.
Não foi surpresa, portanto, o
constrangimento a que Bolsonaro submeteu o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga,
durante cerimônia no Palácio do Planalto no dia 10 passado. “Acabei de
conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é. Ele vai
ultimar um parecer para desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que
estejam vacinados ou que já foram contaminados (pelo coronavírus), para tirar essa… esse
símbolo (mostrando
uma máscara)”, disse o presidente para a plateia de aduladores que
aplaudiram a temeridade.
Dois dias antes, Queiroga voltara a prestar
esclarecimentos à CPI da Pandemia e cometera a imprudência de contradizer o
presidente. Na ocasião, o ministro da Saúde afirmou aos senadores que “não há
comprovação científica” de que medicamentos como cloroquina, ivermectina e
azitromicina, algumas das drogas que compõem o famigerado “kit covid”, têm
eficácia contra o coronavírus. A declaração do ministro da Saúde vai na
contramão do que Bolsonaro vem defendendo, irresponsavelmente, desde o início
da pandemia. A CPI, aliás, foi instalada justamente para apurar as
responsabilidades de todos os que contribuíram para transformar o que seria uma
grave crise sanitária em uma tragédia de quase meio milhão de mortos.
Ao desafiar publicamente o médico que
chefia a pasta da Saúde a se posicionar sobre a flexibilização do uso de
máscara quando a pandemia dá sinais de recrudescimento e uma terceira onda da
doença está à espreita – um despautério que dispensa considerações –, Bolsonaro
quis mostrar que ele, e mais ninguém, manda na condução da política sanitária e
não admite ser contrariado. Os dois ex-ministros da Saúde que ousaram não lhe
prestar obediência cega, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, perderam o
cargo. Eduardo Pazuello, que se submeteu à humilhação, saiu do Ministério
premiado.
Queiroga parece inclinado a empatar o
placar e seguir na trilha da subserviência. Em vídeo publicado no mesmo dia em
que foi compelido por Bolsonaro a dizer se, afinal, está do lado da ciência ou
do presidente, o ministro afirmou que vai “atender à demanda” de Bolsonaro e
mobilizará a estrutura do Ministério da Saúde para realizar o tal estudo sobre
a liberação do uso de máscara. Sendo ele um médico, a ideia deveria ter sido
prontamente repelida, sem tibieza.
A esta altura, é sabido que as pessoas que
já adquiriram anticorpos contra o coronavírus ainda podem transmitir o patógeno
para outras que ainda não desenvolveram a proteção. Ademais, o ritmo de
vacinação no País está aquém da velocidade de transmissão do vírus. Propor a
abolição do uso de máscara neste momento é ideia de quem só pode estar
interessado em aumentar o número de casos de covid-19 e tolera o risco de
provocar ainda mais mortes.
Em depoimento à CPI da Pandemia na
sexta-feira passada, a microbiologista Natália Pasternak e o médico sanitarista
Cláudio Maierovitch foram enfáticos na defesa do uso de máscara e de outras
medidas de proteção individual e coletiva. Alinharam-se ao que já havia sido
sustentado, no mesmo plenário, pela infectologista Luana Araújo, ouvida na
semana anterior.
É deste lado que o ministro da Saúde deve
estar. Marcelo Queiroga parece genuinamente empenhado em ampliar o número de
brasileiros vacinados contra a covid-19. Defendeu publicamente o uso de máscara
e o distanciamento social. Mas isto não basta. Em se tratando de um governo
disfuncional como o de Bolsonaro, servidores sérios e comprometidos com o
interesse público não devem estimular as sandices do presidente. Acima de seus
caprichos está o interesse da Nação.
A seca e o desperdício de água
O Estado de S. Paulo
A crise hídrica por que passa o País, que exigirá medidas excepcionais para evitar o racionamento de energia elétrica e de água, torna mais dramático um problema crônico dos sistemas públicos de abastecimento de água. Trata-se das perdas excessivas de água potável. Elas chegam perto de 40% do total de todo o volume captado.
Algum grau de perda na rede de distribuição
é praticamente inevitável do ponto de vista técnico. Mas o que se observa no
Brasil é o aumento contínuo dos índices de desperdício nos últimos anos, o que
denota envelhecimento e ineficiência do sistema e, mais do que isso, o descaso
das autoridades responsáveis pela construção, operação e manutenção das redes
que levam água às residências dos brasileiros.
Estudo do Instituto Trata Brasil em
parceria com a Associação Brasileira dos Fabricantes de Materiais para
Saneamento (Asfamas), e executado pela consultoria GO Associados com base em
dados de 2019, constatou que 39,2% de toda a água potável captada no território
nacional não chega às residências.
Embora já alto para os padrões mundiais, o
índice de perdas de 2015, de 36,7%, era bem menor do que o de quatro anos
depois. É a prova de que não só nada de efetivo se fez no período, como,
provavelmente, o desleixo na manutenção da rede e no combate ao desperdício e
às fraudes se acentuou.
Para dar ideia da perda estimada para 2019,
o estudo observa que o volume corresponde a 7,5 mil piscinas olímpicas de água
tratada desperdiçadas diariamente. Equivale também a sete vezes o volume
produzido pelo Sistema Cantareira, o principal conjunto de captação e
tratamento de água que abastece a Grande São Paulo.
Outra comparação mostra como poderia ser
melhor o quadro do saneamento básico se o sistema público fosse mais eficiente.
As perdas físicas, por causa de vazamentos, representam 60% do volume total
desperdiçado e seriam suficientes para abastecer cerca de 63 milhões de
brasileiros (cerca de 30% da população) por um ano. É, como lembra o estudo,
água mais do que suficiente para abastecer os 35 milhões de brasileiros que não
dispõem de água corrente nem para lavar as mãos, como recomenda o protocolo de
cuidados contra a covid-19.
É claro que o atendimento da população que
ainda não dispõe de água tratada depende não apenas da disponibilidade do produto,
mas de muitas outras providências, como a definição de regras e de operadoras
responsáveis pelos serviços e a realização de obras. Mas o desperdício, além de
mostrar o grau de ineficiência dos sistemas de distribuição, impõe custo para
operadoras desses sistemas, que perdem parte de sua receita e, sobretudo, para
os consumidores, onerados pela parte restante do desperdício.
Para comparação internacional, o estudo
calculou também o Índice de Perdas de Faturamento Total das operadoras, que dá
uma visão financeira das perdas em relação ao volume produzido. Por esse
índice, no Brasil a perda é de 41%. Países como Estados Unidos e Austrália e
metrópoles como Nova York, Toronto, Tóquio e Copenhague registram índices
menores do que 15%.
Além de melhorar o desempenho financeiro
das operadoras e desonerar os consumidores, o combate eficaz aos desperdícios
reduziria a demanda da água da natureza, o que, lembra o estudo, “ajudaria a
manter mais cheios os rios e reservatórios espalhados pelo País”.
Neste momento, seria um fato altamente
positivo do ponto de vista ambiental e econômico. O País vive uma grande
carência de chuvas, pois os índices de precipitação estimados pelo Operador
Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para este ano são os menores dos últimos 91
anos. Afinal, por não atacar os desperdícios, “as empresas operadoras precisam
buscar mais água na natureza, não para atender mais pessoas, mas para compensar
a ineficiência”, observa o presidente executivo do Trata Brasil, Édison Carlos.
“Em momento de pandemia e pouca chuva, isso cobra um preço altíssimo da
sociedade.”
Dispensar o uso de máscaras no atual cenário é pura insensatez
O Globo
Em mais uma bravata, o presidente Jair Bolsonaro anunciou na quinta-feira que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, está “ultimando um parecer” para desobrigar de usar máscaras quem já tomou vacina ou foi infectado pelo novo coronavírus. No atual cenário, dispensar o uso de máscaras, mesmo para vacinados, seria pura insanidade.
É inegável que a população está ávida para
se livrar de máscaras, quarentenas e restrições. Sentimento aguçado ao perceber
que, nos Estados Unidos, as máscaras não são mais exigidas de vacinados com as
duas doses, desde que fora de hospitais e transporte público. Foi uma decisão
imprudente do presidente Joe Biden, tomada quando apenas 46% haviam sido
imunizados com a primeira dose, porque os números de mortes e infeções estavam
em queda. No Brasil, a situação é bem pior. O contágio ainda está em alta, e os
índices de vacinação são tímidos — pouco mais de 11% tomaram as duas doses.
As vacinas são importantes para prevenir
mortes e hospitalizações, mas não impedem necessariamente que o imunizado
contraia ou transmita o vírus. O mesmo vale para quem já foi infectado, tamanha
a profusão de mutações e novas variantes, algumas capazes de driblar a
imunidade.
Como as vacinas, as máscaras existem não
apenas para proteção individual. O uso traz um benefício coletivo. É importante
entender que você deve usá-las não apenas para se proteger, mas, acima de tudo,
para proteger os outros, pois não sabe se carrega o vírus de forma
assintomática. Com 60% de adoção, máscaras apenas 60% eficazes já são
suficientes para reduzir o contágio a patamares que levam os focos naturalmente
à extinção, segundo estudos do início da pandemia. As variantes mais
contagiosas podem ter elevado esse percentual, daí ser recomendado o uso de
proteções mais eficazes (como máscaras PFF2, que filtram 95% das partículas
microscópicas). Mas qualquer máscara já ajuda.
A pesquisadora britânica Trisha Greenhalgh
comparou dois países que adotaram medidas de distanciamento social no mesmo
dia: República Tcheca e Áustria. O primeiro impôs também o uso de máscaras. O
número de novas infecções caiu mais rápido na República Tcheca. Só baixou na
Áustria depois que elas se tornaram obrigatórias.
Para o epidemiologista Wanderson Oliveira,
liberar a população para não usar máscaras exigiria quatro condições: 70% de
vacinados na população adulta; incidência de casos inferior a 25 por cem mil
habitantes; ociosidade nos leitos exclusivos para pacientes com Covid-19;
positividade menor que 4% em testes, como na Europa. O Brasil não atende a
nenhuma delas.
Independentemente da decisão que o
Ministério da Saúde tome sobre as máscaras, o objetivo de Bolsonaro é minar a
confiança numa das medidas mais eficazes para conter o vírus. Ele não pode ter
êxito em mais uma de suas contribuições inestimáveis à pandemia. Mesmo
vacinado, mesmo que já tenha pegado a doença, continue a usar máscara em
espaços públicos.
Polícia do Rio tem de rever suas ‘regras de
engajamento’
O Globo
A morte da gestante Kathlen Romeu, de 24 anos, atingida na terça-feira por um tiro de fuzil no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, acrescenta mais um nome a uma estatística que não para de crescer. Não é a primeira, nem a segunda, nem sequer a terceira neste ano. Infelizmente não será a última, como admitiu o pai, Luciano Gonçalves, no enterro da filha: “A gente quer justiça. O nosso povo, o povo pobre, está cansado de dizer. Só mudou o personagem. Eu cansei de ver isso. As frases são todas tabuladas, e a violência está cada vez pior”.
Kathlen, que trabalhava com design de
interiores, estava com 14 semanas de gestação. Foi baleada quando se dirigia
com a avó à casa da mãe. A família acusa PMs da UPP pelo disparo. Eles negam.
Alegam que trocaram tiros com bandidos depois de ser atacados quando faziam
patrulhamento de rotina. As versões são conflitantes. A avó afirma que não
havia confronto no momento e, por isso, se sentiu segura para seguir com a neta
por um acesso à comunidade. Kathlen se mudara do local em fins de abril, por
temer a violência.
Um dos aspectos mais cruéis da tragédia é
saber que em breve o caso será suplantado por outras histórias tão trágicas
quanto. Levantamento do aplicativo Fogo Cruzado revela que, desde 2017, 715
mulheres foram baleadas no estado. Quinze estavam grávidas. Oito morreram, e só
um bebê foi salvo. Num dos episódios mais chocantes, em 30 de junho de 2017, um
bebê foi atingido por uma bala perdida dentro da barriga da mãe, numa
comunidade de Duque de Caxias. O projetil perfurou o tórax, o pulmão e a coluna
do bebê, que entrou para as estatísticas de violência antes mesmo de nascer.
Ele morreu um mês depois, no Hospital de Saracuruna.
O que mudou após tal crime? Nada. Balas perdidas
continuam a voar pelos céus do Rio — não importa se vêm da polícia ou de
bandidos, são igualmente mortais. Apenas um dia após a morte de Kathlen, um
adolescente de 16 anos foi baleado de raspão na cabeça quando ia ao
supermercado comprar sorvete no Morro São João, comunidade da Zona Norte não
muito distante do local onde ela fora atingida.
As armas dos PMs que atuaram no Lins — 12
fuzis e nove pistolas — foram recolhidas para perícia, como convém. Doze
agentes foram afastados e estão sendo ouvidos pela Delegacia de Homicídios da
Polícia Civil. A PM também apurará as circunstâncias da morte por meio de um
procedimento independente.
Investigar a barbaridade, identificar seus
autores e puni-los na forma da lei é essencial. Porém apenas isso não
interromperá a frenética produção de balas perdidas. É fundamental que a
polícia reveja seus protocolos. É preciso que fiquem claras as “regras de
engajamento” que regem a ação policial, uma espécie de contrato da polícia com
a sociedade que determina de modo preciso, por escrito e com valor jurídico,
quando, em que condições e circunstâncias um policial pode entrar numa moradia,
sacar ou disparar uma arma.
Não é possível que se assista a uma
tragédia atrás da outra como se isso fosse natural. É inadmissível que a desastrosa
operação no Jacarezinho, a mais letal da história do Rio, com 28 mortos, tenha
sido considerada exitosa pela polícia. Passou da hora de o governo fluminense
ter uma política de segurança que reduza os tiroteios e preserve a vida dos
cidadãos. A que está aí obviamente não funciona. O que se está esperando para
mudá-la? Novas vítimas?
Ajuda espúria
Folha de S. Paulo
Além de crescimento econômico, inflação
melhora perspectiva para contas públicas
Mesmo com os desafios ainda presentes, a
começar pela morosidade da vacinação, as notícias para a economia têm sido
melhores nas últimas semanas. O impacto da segunda onda da pandemia na
atividade foi menor que o temido e os indicadores mais recentes mostram
aceleração de vendas e produção.
As projeções para o ano sugerem alta
do Produto Interno Bruto de até 5%, ante números próximos a 3% até
recentemente. O drama social não é aliviado na mesma proporção, certamente, mas
há consequências importantes.
Uma delas é a redução dos riscos mais
imediatos para as contas públicas, pois o crescimento maior impulsiona a
arrecadação. Na última revisão da programação orçamentária, o governo federal
elevou a expectativa de receita com impostos para este ano em R$ 88 bilhões,
para R$ 1,43 trilhão.
Com as despesas limitadas pelo teto de
gastos, mesmo considerando as exceções aprovadas para o combate à pandemia,
deve haver redução maior que a estimada do déficit primário (o saldo entre
receitas e despesas, excluídos juros).
O perfil da retomada, mais ancorado em
setores pagadores de tributos, como a indústria, também sugere maior impacto na
arrecadação do que o padrão histórico, ao menos por algum tempo.
Outro fator importante é a inflação, que amplia
a base de incidência dos impostos sobre o faturamento, como o PIS e a Cofins, e
também atua para reduzir a relação dívida pública/PIB, em razão do maior
denominador.
Se no final do ano passado havia a
expectativa de que a dívida bruta consolidada do governo atingiria 95% do PIB
em 2021, um salto próximo a 20 pontos percentuais em relação ao patamar vigente
antes da pandemia, agora já se vislumbram números bem melhores, abaixo de 85%
do produto.
Se confirmada essa nova perspectiva, o país
terá passado a pandemia com metade do aumento esperado no endividamento. Em
face da maior percepção sobre esses números, as condições financeiras começaram
a melhorar, com alguma valorização do real e redução incipiente nos juros de
longo prazo.
O alívio é frágil, porém, e pode se mostrar
perigoso se despertar no governo e no Congresso a impressão de que é
conveniente afrouxar as restrições orçamentárias.
O efeito da inflação é apenas transitório,
além da óbvia faceta negativa de obrigar o Banco Central a subir os juros e
encarecer a rolagem da dívida. Também não é claro o quanto a recuperação da
economia será sustentada.
Na realidade, a pressão inflacionária que
corrói a renda do trabalhador foi ampliada desde 2020 justamente pela percepção
de que o governo perderia o controle de suas contas. Qualquer deslize nessa
frente trará ainda mais problemas.
Carandiru sem fim
Folha de S. Paulo
STJ restabelece penas de envolvidos no
massacre, mas desfecho ainda é incerto
Quase 30 anos e inúmeras reviravoltas
processuais depois, o julgamento dos policiais militares envolvidos no massacre
do Carandiru parece finalmente encaminhar-se para
um desfecho.
Parece, sublinhe-se, pois nem isso é
garantido num caso em que a absurda e imperdoável lentidão do Judiciário
redundou, até os dias de hoje, somente em impunidade.
A primeira condenação pelo morticínio de
111 presos da antiga Casa de Detenção de São Paulo, ocorrido em 2 de outubro de
1992, só veio em 2001, quando o comandante da operação, Ubiratan Guimarães, foi
sentenciado a 632 anos. A decisão, contudo, seria revertida em 2006.
De 2013 a 2014 realizaram-se cinco júris
sobre a conduta dos agentes envolvidos na ação; 74 deles terminaram condenados,
com penas de 48 a 624 anos de detenção.
Não bastassem o transcurso de duas décadas
e o fato de os policiais terem podido recorrer das sentenças em liberdade, o
TJ-SP decidiu, em 2016, pela anulação de todos os júris. Dois anos depois, o
mesmo tribunal voltou a analisar o caso, mantendo o veredito e determinando
novo julgamento.
Contra esta última decisão manifestou-se,
nesta semana, o Superior Tribunal de Justiça. O ministro Joel Paciornik
considerou inválida a tese de que as condutas dos agentes não foram
individualizadas o bastante. Restabeleceram-se, assim, as sentenças originais.
A decisão, contudo, pode
não significar o fim do processo. Para o procurador-geral de Justiça de São
Paulo, Mário Sarrubbo, os desembargadores poderiam, agora, tentar anular os
julgamentos a partir de outros aspectos do recurso apresentado pela defesa.
Não há dúvida das complexidades que o caso
encerra. Agindo sob extrema pressão, em uma penitenciária superlotada e sem
iluminação, os policiais não possuíam conhecimento sobre o eventual poder de
fogo dos detentos.
Entretanto tão caótica quanto tenha sido a
investida, por despreparo ou imprudência, o excesso de violência resta mais do
que óbvio. Basta dizer que nenhum PM saiu baleado, ao passo que, em um dos
pavimentos, 90% dos mortos receberam tiros na cabeça.
Incapaz, passado tanto tempo, de oferecer uma resposta satisfatória à barbárie, o Judiciário transmite a noção desumana de que certas vidas nada valem —vidas que cabia ao Estado proteger.
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