- Revista Veja
Resta à sociedade se defender do
autoritarismo e do arbítrio
A decisão sobre punir o general delinquente Eduardo Pazuello foi equiparada a A Escolha de Sofia, livro/filme em que uma jovem mãe é obrigada a escolher qual dos dois filhos vai para a câmara de gás. Nesse paralelo, o comandante do Exército, Paulo Sérgio de Oliveira, teria tido de escolher entre duas opções muito ruins: ou deixava Pazuello impune ou seria desautorizado por Bolsonaro, o que seria ainda pior.
Esse paralelo é falso.
É improvável que Bolsonaro revogasse uma
punição a Pazuello, não apenas porque isso lhe causaria enorme desgaste, mas
porque se o comandante Paulo Sérgio resistisse à ordem, isso poderia até levar
à queda do presidente (como ocorreu com Carlos Luz em 1955). Mais grave: a
capitulação não resolveu o problema do general.
O paralelo adequado é com Neville Chamberlain, o primeiro-ministro britânico que, na esperança de saciar o apetite de Hitler e preservar a paz, aceitou as repetidas provocações do ditador da Alemanha. “Diante da escolha entre a guerra e a desonra”, disse Winston Churchill a Chamberlain, “vocês escolheram a desonra — e terão a guerra.”
O apetite de Hitler era insaciável e veio a
guerra. E, quando veio, o ditador estava poderoso demais e devorou a Europa
quase inteira. “O apaziguador é alguém que alimenta o crocodilo na esperança de
ser o último a ser devorado”, criticou Churchill.
“O
que fará o comandante do Exército quando Bolsonaro encher o palanque de majores
e capitães?”
Ao preferir a desonra ao confronto, Paulo
Sérgio, como Chamberlain, não se livrará do problema: o apetite de Bolsonaro é
insaciável e ele não vai parar até fazer das Forças Armadas a sua milícia
particular. O que fará o comandante do Exército quando Bolsonaro encher o
palanque de majores e capitães? Após devorar o Exército, Bolsonaro ainda
esculachou: deu a Paulo Sérgio a Ordem do Mérito da Defesa (!). A vergonha é
tanta que o comandante estabeleceu sigilo de 100 anos sobre o processo que
deixou impune o general fanfarrão. Paulo Sérgio é uma Sofia que mandou os dois
filhos para a morte e depois se suicidou.
Não se sabe se Paulo Sérgio agiu só por
covardia ou porque o Alto-Comando, apavorado com Lula, aderiu de vez a
Bolsonaro. Seria assombroso se os generais apoiassem a emasculação do Exército
e a transformação do Brasil na Venezuela, mas nossos militares ainda acreditam
na ameaça comunista, de modo que tudo é possível.
O que se sabe é que não se pode contar com
as Forças Armadas para quando Bolsonaro amotinar as PMs. E, por improvável que
seja o sucesso de um golpe de Bolsonaro, a baderna provocará mortes,
depredação, deterioração do tecido social, corrosão da democracia.
Resta à própria sociedade se defender do
autoritarismo e do arbítrio. Em 29 de maio, nós, os brasileiros, enfrentamos
uma escolha de Sofia de verdade: assistir calados enquanto Bolsonaro dissemina
o vírus, ou ir para as ruas e correr o risco de disseminarmos nós mesmos a
doença. Nas próximas manifestações, a decisão será entre o risco de disseminar
a doença e a defesa da nossa democracia.
A democracia atual é a melhor que já
tivemos. Quanto estamos dispostos a arriscar para defendê-la?
Publicado em VEJA de 16 de junho de
2021, edição nº 2742
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