terça-feira, 13 de julho de 2021

Maria Clara R. M. do Prado - Idiossincrasia bolsonariana

Valor Econômico

Governo vai passar para a história como aquele em que faltou vacina na pandemia, mas sobraram ameaças e prepotência

A República brasileira viveu na semana passada o seu pior momento desde a redemocratização, há 36 anos. Em meio à saraivada de notas de repúdio que cruzaram a Esplanada dos Ministérios, entre a pasta da Defesa e o Congresso Nacional, soube-se da expressiva desaprovação do governo nas pesquisas junto ao eleitorado e mesmo os empresários, até então quietos em seus redutos, manifestaram forte insatisfação com o projeto que propõe o aumento do imposto de renda sobre lucros e dividendos.

Ficou a impressão de que o governo está se desintegrando um ano e meio antes de acabar.

Sem plano e sem rumo, mas com forte dose de arrebatamento e ataques de fúria que crescem ao longo do mandato, o presidente Bolsonaro deixou boa parte da sociedade perplexa ao ouvi-lo chamar de imbecil e de idiota o presidente do Tribunal Superior Eleitoral(TSE) e integrante do Supremo Tribunal Federal(STF), ministro Luís Roberto Barroso, na sexta-feira.

Teria atingido o limite? Difícil dizer, mas parece claro que o presidente não sente qualquer constrangimento nem arrependimento em denegrir a imagem de representantes dos poderes da República.

Com o jeito bolsonariano de ser, este governo vai passar para a história como aquele em que faltou vacina na pandemia, mas sobraram ameaças, prepotência e destempero.

As etapas podem ser facilmente demarcadas por episódios emblemáticos.

No início, mal tendo assumido, Bolsonaro patrocinou um sistema oligárquico ao delegar aos filhos - um senador, um deputado federal e um deputado estadual - o direito de falarem e agirem em nome da Presidência da República. Ainda hoje buscam influenciar o governo, embora já não tenham o mesmo poder desde a substituição a duras penas dos ministros da Educação, das Relações Exteriores e do Meio Ambiente, aliados de primeira hora.

O primeiro grande embate público do presidente foi travado contra o ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, em 24 de abril de 2020. Redundou na troca do comando da Polícia Federal, como queria Bolsonaro, mas deixou como rastro denúncias relacionadas aos filhos no caso das “rachadinhas” e a divulgação, autorizada pelo STF, da gravação de uma espantosa reunião ministerial que explicitou o comportamento errático do governo.

E assim segue, aos trancos e barrancos.

Pego de surpresa e sem competência para lidar com o desafio da pandemia, ao invés de adotar providências no sentido de combater o sars cCoV-2, o presidente preferiu menosprezá-lo e ficou refém do inesperado. Optou por um discurso que insufla a população à vingança com atitudes de confronto que estimulam as aglomerações, condenam o uso de máscaras e desprezam as vacinas. Comporta-se como se o vírus fosse o seu inimigo político número um.

Bolsonaro apostou no contrassenso e paga um preço político por isso.

Por ocasião da instalação da CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito - que investiga os atos (ou não atos) do governo relacionados à pandemia, Bolsonaro tentou desviar a atenção para as outras esferas de governo. Mas não colou. A CPI segue com os depoimentos e a investigação parece ter esbarrado naquilo que até há poucas semanas a sociedade desconhecia: a suspeita de uma rede de corrupção, próxima ao Ministério da Saúde, relacionada à compra de vacinas.

De novo, o presidente prefere agir como se a realidade não existisse e vai fundo: diz que caga para a CPI. Em meio ao devaneio surge, de repente, algo inexplicável: a manifestação dos comandantes das Forças Armadas contra os trabalhos da CPI que apura denúncias de atos irregulares com potencial de comprometerem escalões do governo federal. Deve soar estranho para alguém que não vive no Brasil nos tempos de agora, em pleno século XXI, e não entende o que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica têm a ver com o Ministério da Saúde. A rigor, nada, mas na confusão institucional dos últimos tempos virou rotina confundir Estado com governo, público com privado, servidor com atribuições da carreira civil com servidor militar.

A escalada dos arroubos bolsonarianos cresce em novos decibéis à medida em que as pesquisas de opinião pública revelam queda cada vez mais acentuada da preferência do eleitorado por Bolsonaro nas eleições de 2022. Na última pesquisa DataFolha, divulgada no final da semana passada, ele perderia no segundo turno para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para o governador de São Paulo, João Doria, e para o ex-governador do Ceará Ciro Gomes, se o pleito ocorresse hoje. Já se trabalha com a hipótese de Bolsonaro não passar do primeiro turno.

Quanto mais cai nas pesquisas, mais ataca a urna eletrônica, o outro grande inimigo declarado. Contra ela, Bolsonaro tem esgrimido tal qual espadachim que tenta lutar contra um rival fantasioso. Ameaça que não haverá eleições se não houver voto impresso, uma retórica sem sentido em um país que há muitos anos não ouve falar de fraude eleitoral e cujo sistema de votação tem sido, inclusive, considerado um exemplo a ser seguido no mundo.

Tal qual o vírus da covid 19, Bolsonaro quer apagar a realidade das pesquisas e elege um bode expiatório para alimentar suas ilusões.

Diante das idiossincrasias bolsonarianas, deve-se perguntar para que serve tudo isso? De que serve negar a existência do vírus? De que serve atacar o STF, a CPI da pandemia, governadores e prefeitos? De que serve o apoio das Forças Armadas a pessoas e fatos suspeitos de corrupção, antes mesmo de serem investigados? De que servem os ataques à urna eletrônica?

Definitivamente, não servem à República, à Constituição, aos poderes democraticamente constituídos e muito menos às Forças Armadas. Não se pode perder de vista o caminho percorrido na redemocratização. Não estamos em Cuba nem na Venezuela.

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