Folha de S. Paulo
Abrir mão da realidade é aceitar a força
como único critério para resolver conflitos
Comentando sobre o áudio da
ex-cunhada de Bolsonaro que o incriminava no esquema de “rachadinhas”,
seu filho Flávio opinou que tudo não passa de uma “narrativa que tentam armar
contra a família Bolsonaro”. O próprio presidente, no mês passado, em discurso
em Chapecó, acusou a CPI da Covid de “inventar narrativas” contra ele.
Quem acompanha os meios
bolsonaristas sabe que “narrativa” se tornou uma verdadeira
palavra de ordem. A lógica é: nós temos a Verdade; contra nós se erguem
“narrativas”, ou seja, histórias falsas ou tendenciosas. Mas quem tem,
realmente, uma narrativa?
Para agirmos no mundo, precisamos de
conhecimento. Usando nossa razão, conseguimos a muito custo descobrir alguns
fatos.
Nosso conhecimento, no entanto, não é um
mero acúmulo de fatos desconexos. É preciso estabelecer relações entre eles, de
forma que contem uma história coerente e simplificada que nos permita entender
a realidade e nosso lugar nela de maneira mais ampla. Isso é uma narrativa.
É possível, a partir dos mesmos fatos, contar histórias muito diferentes.
Veja: uma maioria do povo brasileiro,
indignada com a corrupção e inoperância da política e farta do discurso do
PT, votou em Bolsonaro para fazer uma limpeza ética e botar o Brasil
pra funcionar.
Uma maioria do povo brasileiro, refletindo
preconceitos de longa data e desejando dar livre vazão a seus desejos mais
violentos e egoístas, votou em Bolsonaro em
2018. Duas narrativas diferentes do mesmo período.
Todo lado tem uma narrativa, inclusive o
lado que diz não tê-la, e assim foge da questão: como saber se minha narrativa
é verdadeira? Essa indagação leva à disposição de sempre corrigi-la, melhorá-la
ou até abandoná-la à luz de novos fatos e argumentos.
Sem essa disposição de submeter a narrativa
ao conhecimento objetivo, sobra apenas a guerra de comunicação. E é justamente
nisso que o bolsonarismo aposta. A característica principal desse tipo de
disputa é tirar o foco do assunto sendo discutido —o mérito da questão— e focar
na desqualificação das pessoas.
Os dados do desmatamento são falsos porque
ONGs internacionais querem nossa selva; cientistas não devem ser ouvidos porque
estariam a serviço do PT; nas
universidades e Redações, só tem maconheiro. Não existem problemas
reais de meio ambiente, saúde pública ou economia. Existem apenas narrativas em
conflito e uma disputa a ser vencida com técnicas de persuasão e propaganda.
Ninguém vê a si mesmo como irracional.
Ninguém defende que se descartem fatos em nome de uma crença. A condição mental
em que, na prática, abre-se mão da própria racionalidade é o resultado de um
condicionamento psicológico.
Quando as pessoas são incentivadas a odiar
cada vez mais seus supostos inimigos, a defender seus líderes (e seus símbolos)
como se fossem sagrados, a confiar cegamente nos membros de seu próprio grupo e
desconfiar de qualquer informação que venha de fora, elas colocarão sua
narrativa favorita acima de sua racionalidade. Essa é a função dos
comunicadores bolsonaristas.
Abrir mão da busca —sempre incompleta— pela
realidade objetiva, que deve balizar nossas narrativas e desejos, é aceitar que
o único critério para a resolução de conflitos é a força. Num universo sem
verdade, onde é impossível persuadir alguém racionalmente e onde as crenças
refletem apenas interesses, a única maneira de se sobrepor é se impor pela
violência. Não é à toa que seja justamente isso que Bolsonaro ameace fazer.
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