terça-feira, 13 de julho de 2021

Joel Pinheiro da Fonseca - Bolsonarismo e narrativa

Folha de S. Paulo

Abrir mão da realidade é aceitar a força como único critério para resolver conflitos

Comentando sobre o áudio da ex-cunhada de Bolsonaro que o incriminava no esquema de “rachadinhas”, seu filho Flávio opinou que tudo não passa de uma “narrativa que tentam armar contra a família Bolsonaro”. O próprio presidente, no mês passado, em discurso em Chapecó, acusou a CPI da Covid de “inventar narrativas” contra ele.

Quem acompanha os meios bolsonaristas sabe que “narrativa” se tornou uma verdadeira palavra de ordem. A lógica é: nós temos a Verdade; contra nós se erguem “narrativas”, ou seja, histórias falsas ou tendenciosas. Mas quem tem, realmente, uma narrativa?

Para agirmos no mundo, precisamos de conhecimento. Usando nossa razão, conseguimos a muito custo descobrir alguns fatos.

Nosso conhecimento, no entanto, não é um mero acúmulo de fatos desconexos. É preciso estabelecer relações entre eles, de forma que contem uma história coerente e simplificada que nos permita entender a realidade e nosso lugar nela de maneira mais ampla. Isso é uma narrativa.

É possível, a partir dos mesmos fatos, contar histórias muito diferentes.

Veja: uma maioria do povo brasileiro, indignada com a corrupção e inoperância da política e farta do discurso do PT, votou em Bolsonaro para fazer uma limpeza ética e botar o Brasil pra funcionar.

Uma maioria do povo brasileiro, refletindo preconceitos de longa data e desejando dar livre vazão a seus desejos mais violentos e egoístas, votou em Bolsonaro em 2018. Duas narrativas diferentes do mesmo período.

Todo lado tem uma narrativa, inclusive o lado que diz não tê-la, e assim foge da questão: como saber se minha narrativa é verdadeira? Essa indagação leva à disposição de sempre corrigi-la, melhorá-la ou até abandoná-la à luz de novos fatos e argumentos.

Sem essa disposição de submeter a narrativa ao conhecimento objetivo, sobra apenas a guerra de comunicação. E é justamente nisso que o bolsonarismo aposta. A característica principal desse tipo de disputa é tirar o foco do assunto sendo discutido —o mérito da questão— e focar na desqualificação das pessoas.

Os dados do desmatamento são falsos porque ONGs internacionais querem nossa selva; cientistas não devem ser ouvidos porque estariam a serviço do PT; nas universidades e Redações, só tem maconheiro. Não existem problemas reais de meio ambiente, saúde pública ou economia. Existem apenas narrativas em conflito e uma disputa a ser vencida com técnicas de persuasão e propaganda.

Ninguém vê a si mesmo como irracional. Ninguém defende que se descartem fatos em nome de uma crença. A condição mental em que, na prática, abre-se mão da própria racionalidade é o resultado de um condicionamento psicológico.

Quando as pessoas são incentivadas a odiar cada vez mais seus supostos inimigos, a defender seus líderes (e seus símbolos) como se fossem sagrados, a confiar cegamente nos membros de seu próprio grupo e desconfiar de qualquer informação que venha de fora, elas colocarão sua narrativa favorita acima de sua racionalidade. Essa é a função dos comunicadores bolsonaristas.

Abrir mão da busca —sempre incompleta— pela realidade objetiva, que deve balizar nossas narrativas e desejos, é aceitar que o único critério para a resolução de conflitos é a força. Num universo sem verdade, onde é impossível persuadir alguém racionalmente e onde as crenças refletem apenas interesses, a única maneira de se sobrepor é se impor pela violência. Não é à toa que seja justamente isso que Bolsonaro ameace fazer.

 

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