O Estado de S. Paulo
Quando assumiu a Presidência da República,
Jair Bolsonaro indicou para o Ministério da Economia um economista que se
apresentou como um liberal formado na melhor tradição da Universidade de
Chicago. Expressando-se por meio dessa metáfora, esse foi o modo de dizer que
se tratava de um liberal de mercado, enfatizando sua crença na flexibilidade e
na capacidade dos cidadãos de agir de acordo com o livre jogo da oferta e da
procura.
No curso de economia dessa universidade, o liberalismo é reduzido a uma concepção bem mais singela do que na filosofia política. Nessa concepção de liberalismo, a economia não é vista como instrumento de desenvolvimento e, por consequência, de emancipação e inclusão social. Por isso, o liberalismo de mercado relega para segundo plano discussões sobre temas como democracia, Estado de Direito, igualdade, equidade, justiça social e planejamento, por exemplo. Apossado por economistas com formação neoclássica, o liberalismo de mercado é visto, basicamente, como ideia legitimadora de uma economia muito pouco regulada e que vê o capitalismo como um fim em si mesmo.
Trata-se de uma concepção de economia que
despreza tanto o senso de comunidade e o sentido de alteridade quanto a própria
ideia de bem comum. E que também valoriza de modo extremado a eficiência e a
acumulação ilimitada, a ponto de relegar os que vivem em sociedade com menos
recursos econômicos, de menosprezar os derrotados no livre jogo de mercado, de
aversão aos desvalidos, de desmerecer os deserdados das novas tecnologias e de tratar
o subemprego com um indisfarçável viés darwinista.
Essa é uma concepção de economia regida
pela obsessão do lucro no curto prazo, sem a preocupação de assegurar um mínimo
de responsabilidade social de quem o obtém. Em suma, é, no limite, uma
concepção de economia que vê direitos como custo, promovendo a
desconstitucionalização de conquistas sociais para poupar o orçamento
governamental e desmanchando, em nome da austeridade fiscal e por meio de
programas de privatização, as redes de serviços públicos básicos destinados à
população de baixa renda.
Assim, por ignorar a realidade em que vive
e canonizar uma economia de mercado quase autorregulada, era inevitável que
após mais de dois anos e meio à frente do Ministério da Economia o
liberal soi disant chancelado
pela Universidade de Chicago deixasse um rastro de fracassos. Atirou para todos
os lados, revelando-se incapaz de estabelecer prioridades. Prometeu reformas
estruturais liberalizantes no início da gestão, editando MPs com enviesamento
patronal, como (a) a que autorizava a suspensão de contratos de trabalho sem
prever providências compensatórias para os trabalhadores, (b) a que dificultava
o acesso aos tribunais de segurados e pensionistas do INSS e (c) a que reduzia
pensões e subsídios sob a justificativa de baratear o custo de mão de obra.
Também taxou quem recebe o seguro-desemprego para compensar o que deixaria de
entrar no caixa do Tesouro por causa dos benefícios fiscais dados às empresas
que contratassem jovens de 18 a 29 anos. Negou recursos para que o IBGE
promovesse o Censo Demográfico. Limitou a discricionariedade dos fiscais do
trabalho. Agora patrocina duas reformas mal formuladas – a administrativa, que
multiplica vagas de cargos comissionados que podem ser preenchidos por
indicação política, e a do imposto de renda, que desorganiza a produção
justamente no momento em que o país necessita de mais investimentos.
Num período em que a pandemia empurrou mais
4,3 milhões de trabalhadores para a faixa de renda mais baixa nas regiões
metropolitanas, em que o número de desempregados ultrapassou os 14,4 milhões e
em que o de desalentados chegou a quase 6 milhões, o liberal de mercado primou
ainda por falas bizarras. Elas revelaram não apenas um grau preocupante de
aparofobia, mas também atestaram um modo vulgar do pensamento econômico que
reduz o liberalismo à ideia de livre mercado. “Dólar alto é bom (porque)
empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”, disse ele no
início de 2020. E criticou o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino
Superior (Fies) por “bancar a universidade até para filho de porteiro” e, após
afirmar que “o prato de um classe média europeu, que já enfrentou duas guerras
mundiais, é relativamente pequeno e aqui nós fazemos almoço e deixamos uma
sobra enorme”, propôs a distribuição das sobras para famintos, em 2021.
Nestes pouco mais de dois anos e meio de
governo Bolsonaro, repleto de encadeamentos de decisões equivocadas e absurdas,
atenções foram basicamente voltadas para a profusão de barbaridades ditas por um
presidente populista, sempre estimulando o discurso do ódio, provocando o
acirramento ideológico, afrontando a ordem jurídica, insinuando que um regime
autoritário é mais eficiente e, com isso, sempre testando o limite das
instituições. As atenções também foram e continuam sendo voltadas ao modo
inconsequente e irresponsável como ele vem se comportando durante a pandemia,
tentando desmoralizar as vacinas, o uso de máscara e políticas de isolamento.
De certo modo, as barbaridades e a negação da ciência acabaram tirando o
liberal de mercado das manchetes da mídia.
Mas, neste período marcado por uma sucessão
de crises de graus distintos e de mais incertezas do que conseguimos lidar, é
preciso olhar para além da vida política e da crise da saúde pública. Quem se
dispuser a fazer isso verá que na área econômica, por exemplo, o que se tem é
um cenário sombrio. A ponto de evidenciar que, enquanto a economia estiver sob
comando de um liberal de mercado, o Brasil continuará negando a surrada
profecia de que é o país do futuro.
*José Eduardo Faria, professor titular da Faculdade de Direito da USP e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
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