O Globo
Foi Exu o encarregado de andar de aldeia em
aldeia para ouvir do povo todas as vivências possíveis. Ventura e drama.
Vitória e derrota. Justiça e vilania. Saúde e doença. Vida e morte. Essas
histórias foram dar nos relatos primordiais que se repetem na vida humana e se
revelam na leitura oracular. “Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o
que acontece já teria acontecido antes”, escreveu Reginaldo Prandi em
“Mitologia dos orixás”. Elza Soares foi a mulher brasileira que experimentou —e
cantou — dissabores e delícias, todos eles. No país, ninguém como ela.
Impossível imaginá-la ausente.
Elza partiu súbita e serenamente como cabe
aos merecedores. Teve existência completa. Amou e sofreu e pariu e enterrou e
bateu e apanhou e brigou e aproveitou e riu e chorou e ganhou e gastou e
cresceu e envelheceu. Morreu aos 91 anos, 70 de carreira, na métrica temporal
que pactuamos, porque nem a vida nem a obra de Elza cabem nesses intervalos.
Ela própria nunca tratou da idade, definia-se atemporal. Tinha consciência de
que sempre existiu, porque tudo o que passou não dá conta de uma encarnação.
Elza Soares, Exu que é, pertence ao ontem, ao hoje, ao amanhã.
Foi içada a voz do milênio, no singular, mas era plural. Será lembrada por se fazer ecoar por dois milênios. Abriu caminho no século XX; atualíssima, adentrou o XXI. Menina ainda, avisou a Ary Barroso que vinha do Planeta Fome, o mesmo de Carolina Maria de Jesus em “Quarto de despejo” (1960) e de 19 milhões de brasileiros nestes tempos de pandemia e crises. Elza Soares da Conceição saiu da Vila Vintém, foi ungida em Água Santa, conquistou o Brasil. Foi amada, renegada e, por fim, idolatrada.
Partiu do samba, abarcou um mundo de
estilos. Cantou o morro, a cultura popular, o amor, a dor, a violência de
gênero. Emprestou sua voz rascante à política, à justiça social, ao direito das
mulheres e dos LGBTQIA+. Defendeu o povo negro, denunciou o racismo, festejou
conquistas. Reverenciou os blocos de sujo do carnaval de rua e as escolas de
samba — nem rivalidade nem contradição. Interpretou na Avenida o samba da
Mocidade Independente de Padre Miguel, território de origem. Pela agremiação
foi homenageada no carnaval inesquecível de 2020, o último que experimentamos.
Elza é mito, porque atravessou com coragem
e dignidade, afeto e raiva, franqueza e transparência os altos e baixos a ela
reservados. Casou-se e foi mãe ainda menina; sofreu violência doméstica, perdeu
filho, enviuvou; foi do trabalho precário à fama. Entregou-se ao amor da vida e
perdeu tudo. Foi esquecida e ressurgiu ícone de jovens recém-saídos da
adolescência. Sua existência está gravada em discos e flutuando em narrativas
orais que subvertem espaço-tempo.
Elza viveu para o trabalho e exerceu seu
ofício até o fim. Será lembrada por “Lata d’água”, “Se acaso você chegasse”,
“Eu bebo sim”, “Salve a Mocidade”, “Canta canta, minha gente”, “Meu guri”, “A
carne”, “A mulher do fim do mundo”, “Maria da Vila Matilde”, “Bloco de sujo”.
No último mês de 2021, lançou o álbum derradeiro com João de Aquino — apenas
voz e violão. Sublime. Dois dias antes de morrer, Elza gravou DVD em São Paulo,
conforme contou o empresário Pedro Loureiro.
Ela partiu em casa, uma cobertura
recém-adquirida no Rio, no dia do padroeiro da cidade, o mesmo em que
Garrincha, seu grande amor, também morreu, 39 anos atrás. São Sebastião é
relacionado nas macumbas cariocas a Oxóssi, orixá que será enredo da Mocidade
no próximo carnaval. Uma escola, duas divindades. O santo que a cidade
homenageia no 20 de janeiro, de agora em diante, passa a dividir seu feriado
com Elza, a deusa, Soares.
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