Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Lula não se propõe a revogar a reforma,
como se depreende de tudo que tem sido publicado a respeito. Ele se propõe a
revê-la, o que é muito diferente
Em artigo publicado na “Folha de S. Paulo”,
o ex-presidente Michel Temer questiona a inclusão do tema de sua reforma
trabalhista, de 2017, na pauta da campanha eleitoral de 2022. Inútil, porque
esse será um tema obrigatório das oposições, o que forçará a direita a se
explicar e a defender o talvez indefensável. O endereço da crítica é Lula e os
partidos sociais.
Lula é um reconhecido especialista no tema
da negociação nas relações de trabalho. Ele nasceu como nova liderança dos
trabalhadores dos setores mais modernos de nossa indústria, críticos do
peleguismo herdado do Estado Novo, desafiados pela visão do problema que tinha
o capitalismo multinacionalizado dos anos 1970.
Tornou-se expressão do novo sindicalismo, liberto da tutela do Ministério do Trabalho. Lula conseguiu desenvolver uma estratégia de reivindicações laborais junto às empresas, que o preferiam à interferência do governo na definição de salários porque ele sabia o que era o trabalho e o valorizava. Sua estratégia foi também agregadora dos trabalhadores dos setores residuais da produção, com menos força negocial. Se alguém atuou para a modernização política das relações de trabalho no Brasil, foi Lula.
A reforma trabalhista de 2017 ocorreu num
momento politicamente impróprio para assegurar a legitimidade das mudanças que
foram feitas, porque de governo residual de uma antecessora impedida. Foram
notórias as pressões para que se aproveitasse a brecha e se viabilizasse
mudanças na legislação do trabalho que atenuassem a força reivindicativa da
classe trabalhadora.
Lula não se propõe a revogar a reforma,
como se depreende de tudo que tem sido publicado a respeito. Ele se propõe a
revê-la, o que é muito diferente.
O artigo que analiso tem vários pontos
vulneráveis ao contraponto de uma análise sociológica. Um deles é este:
“Anote-se que, promulgada a reforma, não houve nenhuma greve de trabalhadores.
Ao contrário, houve entendimento”. Na verdade, entre 2011 e 2020, segundo o
Dieese, houve aumento do número de greves, porém em função de circunstâncias
muito variáveis, de modo algum relacionadas com descabida liberalidade nos
direitos trabalhistas.
Em 2017, houve 746 greves na esfera
privada. As causas foram 55,5% por descumprimento dos direitos trabalhistas e
43,6% por atraso no pagamento de salários. Em 2020, o número de greves caiu
para 417 na esfera privada. Uma queda que expressa os efeitos econômicos da
pandemia no aumento do desemprego e na atual fragilidade política da classe
trabalhadora.
Nesse ano, 40,2% das greves decorreram de
atraso no pagamento de salários. Em 2011, essa fora a causa de 24,7% das
greves. Aumentou no decênio o número de greves motivadas pela conduta de
patrões, minoritários, que colhem frutos do trabalho alheio mas não o pagam.
Classe fragilizada porque, com a
reestruturação produtiva, o trabalho foi substituído por tecnologia, o processo
de trabalho foi fragmentado. Desmembrado, o trabalhador deixou de ser uma
pessoa do trabalho para se tornar uma pessoa na expectativa de trabalho, à
espera do desemprego que o ameaça.
Ele já não personifica o trabalho nem mesmo
quando está ocupado. Com a mera ocupação no lugar do verdadeiro trabalho,
disseminou-se a pré-ocupação, como diz Agnes Heller, a ocupação precária como
inquietação. O trabalho do trabalhador à procura de trabalho mesmo quando
ocupado, reduzido àquilo que já não é.
A reforma trabalhista de 2017 confirmou que
o trabalhador modernizado e barateado já não é um ser de certezas. Tornou-se
pobre de uma nova pobreza porque pobre de esperança.
Temer se refere à criação de novos empregos
em decorrência da reforma trabalhista. Porém, quais empregos? A reforma
trabalhista não viabiliza necessariamente o reemprego do trabalhador
desempregado pela modernização da produção. O trabalho é um tema social e só
redutivamente é um tema econômico.
Todo esse sistema de mudanças tem criado o
trabalhador descartável, cujo lugar no capitalismo tende a ser precário e
adjetivo. O privilegiamento explicativo das questões sociais pela economia
pressupõe, equivocadamente, que os desempregados se reciclam profissionalmente,
induzidos pelo crescimento econômico. Mas, não raro, a mudança degrada a força
de trabalho e desvaloriza o trabalhador.
O autor louva a modernização durante seu
governo. Mas é preciso entender que a modernização econômica, em todas as
partes, tem desdobramentos sociais geralmente desastrosos na vida dos que são
por ela alcançados. Essa concepção de modernização é ideológica. Limita-se às
vantagens econômicas dos que dela se beneficiam, mas não visualiza nem explica
suas decorrências anômicas e os problemas sociais que cria.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp).
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