EDITORIAIS
Chefe da Anvisa deu resposta precisa e
certeira a Bolsonaro
O Globo
Foi, antes de tudo, precisa a resposta do
presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra
Torres, às provocações do presidente Jair Bolsonaro a respeito da aprovação da
vacina contra a Covid-19 para crianças entre 5 e 11 anos. Precisa e certeira
diante da irresponsabilidade de Bolsonaro.
Em entrevista à TV Nova Nordeste na semana
passada, em meio às imprecações ofensivas e desrespeitosas à dor alheia já
costumeiras na fala presidencial, Bolsonaro insinuou haver interesses escusos
na aprovação da vacinação infantil. “O que está por trás disso?”, perguntou.
“Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o interesse daquelas
pessoas taradas por vacina?”
Já é absolutamente inaceitável um
presidente da República, movido tão somente pelo interesse de insuflar uma
plateia fiel a seus despropósitos, desprezar o sofrimento das famílias que
perderam suas crianças para a maior pandemia em mais de um século — no Brasil,
a Covid-19 tem matado aproximadamente uma criança a cada dois dias. É ainda
mais grave ele insinuar haver algum tipo de irregularidade ou interesse escuso
da Anvisa sem exibir provas.
Qualquer um que acusa sem apresentar provas incorre no crime de calúnia, previsto no Código Penal. Se um gestor público toma conhecimento de provas de corrupção e não leva a denúncia adiante, aí incorre em prevaricação. Foi justamente esse o ponto destacado por Barra Torres na nota que emitiu em resposta a Bolsonaro. “Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique”, escreveu. “Determine imediata investigação policial sobre minha pessoa, aliás sobre qualquer um que trabalhe na Anvisa, que com orgulho tenho o privilégio de integrar. Agora, se o senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate.”
Além de descrever os fatos com precisão,
Barra Torres também demonstrou, em sua resposta, ter empatia e solidariedade
com o sentimento das dezenas de milhões de famílias brasileiras atingidas pela
pandemia. “Sofri a cada perda, lamentei cada fracasso e fiz questão de ser eu
mesmo, o portador das piores notícias, quando a morte tomou de mim um
paciente”, afirmou. “Vou morrer sem conhecer riqueza, senhor presidente. Mas
vou morrer digno.” E encerrou com uma conclusão óbvia e singela: “Rever uma
fala ou um ato errado não diminuirá o senhor em nada. Muito pelo contrário”.
Está aí, resumida em palavras simples, ao
alcance de todos, a maior limitação de Bolsonaro: trata-se de alguém incapaz de
ter a dignidade de reconhecer os próprios erros ou de se retratar de uma
acusação falsa. É verdade que depois, em entrevista à Jovem Pan, Bolsonaro
tentou consertar o estrago, dizendo que não tinha acusado ninguém de corrupção.
Ainda assim, voltou a levantar dúvidas sobre a Anvisa.
O presidente continua incapaz de manifestar
um mínimo de empatia com a dor alheia. Isso vai além de seu desprezo pelos
fatos, pela verdade ou pela ciência. É desprezo pela vida mesmo. Pode não haver
uma lei específica contra isso, mas o país, enlutado pela perda de mais de 620
mil brasileiros para o vírus, certamente saberá lhe dar uma resposta à altura
nas urnas.
Tragédia em cânion de Capitólio expõe
negligência com prevenção
O Globo
A tragédia em Capitólio (MG), onde um
paredão rochoso de um cânion desabou no sábado matando dez turistas e causando
ferimentos em dezenas, expôs mais uma vez a negligência com a prevenção de
desastres no país. Não são poucos os indícios de descaso com a segurança dos
frequentadores. A queda do bloco de pedra poderia ser imprevisível, mas era
possível ter reduzido os riscos para visitantes. Bastaria haver normas de
segurança satisfatórias.
Como é de praxe, os atores envolvidos
tentam se esquivar de responsabilidades. A Marinha, a quem cabe fiscalizar as
embarcações que operam no Lago de Furnas, informou que o ordenamento do espaço
caberia ao município. A prefeitura de Capitólio alegou que a responsabilidade é
da Marinha. O jogo de empurra explica muita coisa.
Considerando o fluxo de turistas, seria
razoável supor que houvesse um mapeamento e um monitoramento geológico do
rochedo, especialmente na área da cachoeira, onde lanchas lotadas de turistas
costumavam se concentrar. Na tarde de sábado, havia sete embarcações no local,
quatro delas foram atingidas pelas pedras. A prefeitura admitiu que esse estudo
nunca foi feito.
“Se existisse na região um mapeamento
técnico-geológico sobre os blocos de rocha, as fraturas indicando os locais de
possíveis quedas, essa região em época de chuva deveria ter sido interditada”,
disse ao Fantástico Joana Paula Sánchez, professora de mapeamento geológico na
Universidade Federal de Goiás. “A gente nunca acredita que uma rocha tão
grande, tão dura, vá ceder ou cair, mas o local já apresentava indícios há
muitos anos de separação desse bloco que caiu do maciço rochoso principal onde
ele era ‘colado’. Então essa tragédia poderia ter sido evitada.”
Como mostrou reportagem do GLOBO, o médico
Flávio Freitas, que visitou o Lago de Furnas dez anos atrás, publicou nas redes
sociais uma foto do bloco rochoso com a legenda: “Essa pedra vai cair”. A
imagem, republicada após o acidente, era apenas a observação de um leigo. O
aviso deveria ter ensejado ao menos uma inspeção.
A presença de turistas no local fica ainda
mais inexplicável porque às 10h20 (duas horas antes do desabamento) a Defesa
Civil emitira alerta de chuva forte, recomendando evitar as cachoeiras de
Capitólio. Havia precedentes. No ano passado, três turistas morreram em
consequência de uma cabeça-d’água numa cachoeira.
Evidentemente, é preciso que se investiguem
as causas do desabamento e as responsabilidades de cada um na tragédia que
matou dez brasileiros que queriam apenas passar um sábado agradável com suas
famílias. Tão importante quanto apurar os fatos é fazer um estudo sobre os
pontos vulneráveis do cânion e criar normas rígidas de segurança impedindo que
os turistas se aproximem demais dos paredões e determinando que os passeios
sejam suspensos em condições meteorológicas desfavoráveis. Não reparará os
danos, mas pelo menos poderá evitar que tragédias semelhantes aconteçam.
Resposta adequada a uma leviandade
O Estado de S. Paulo.
Não se sabe se Bolsonaro responderá legalmente pela acusação feita contra os servidores da Anvisa, mas nota de Barra Torres está à altura da agressão
No sábado passado, o diretor-presidente da
Anvisa, Antonio Barra Torres, publicou uma nota corajosa, em tom marcadamente
pessoal, como resposta à grave acusação feita pelo presidente Jair Bolsonaro de
que interesses escusos de servidores da agência sanitária teriam motivado a
aprovação da vacinação de crianças entre 5 e 11 anos contra a covid-19. “Qual o
interesse da Anvisa? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por vacinas?”,
insinuou Bolsonaro, em mais uma demonstração de que é indigno do cargo no qual,
infelizmente, foi investido.
O tempo vai dizer se a acusação leviana –
mais uma do presidente, digase – terá alguma consequência legal. A rigor,
deveria ter. O que Bolsonaro fez foi lançar dúvidas infundadas sobre a
honestidade de servidores públicos que, após analisarem os estudos de segurança
e eficácia do imunizante da Pfizer para o público infantil, o mesmo já aplicado
em crianças daquela faixa etária em diversos países, decidiram autorizar a
vacinação infantil como forma de aumentar o nível de proteção dos brasileiros
contra uma doença que já causou a morte de mais de 620 mil pessoas no País.
Entretanto, ao menos por ora, a nota do contra-almirante Barra Torres já é por
si só uma eloquente resposta à irresponsabilidade e à falta de espírito público
que marcam a atuação de Bolsonaro no curso da pandemia.
Como diretor-presidente de uma agência
estatal que, na insinuação do presidente da República, agiria motivada por
interesses antirrepublicanos, se não criminosos, Barra Torres, com razão,
sentiu-se pessoalmente atacado por Bolsonaro em sua honra e profissionalismo. O
tom de sua nota, portanto, não haveria de ser outro que não o de uma resposta
pessoal e direta a seu acusador. Com a indignação típica dos que se veem
acusados de um crime que não cometeram – “Vou morrer sem conhecer riqueza,
senhor presidente, mas vou morrer digno” –, e decerto respaldado pela autonomia
que lhe assegura seu mandato à frente de um órgão de Estado, e não de governo,
Barra Torres exortou Bolsonaro a agir como manda a lei, nada mais. “Se o senhor
dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este
brasileiro”, escreveu o diretor-presidente da Anvisa, “não perca tempo nem
prevarique. Determine a imediata investigação policial sobre minha pessoa,
aliás, sobre qualquer um que hoje trabalhe na Anvisa, que com orgulho eu tenho
o privilégio de integrar.”
No início de seu mandato, havia dúvidas se
Barra Torres, indicado pelo presidente da República para o cargo, não seria
mais um esbirro de Bolsonaro na defesa de seus desatinos, e justamente no
momento mais dramático da história da agência. Mas o tempo se encarregou de
dissipar essas dúvidas. Como destacou em sua nota, o também médico Barra Torres
tem marcado sua gestão à frente da Anvisa por colocar a ciência acima da
política, “a razão à frente do sentimento”, o interesse público acima dos
interesses eleitorais de quem o indicou.
Afirmando ser “cumpridor dos mandamentos”
cristãos e jamais ter levantado “falso testemunho”, Barra Torres pediu que
Bolsonaro “exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor
tanto cita, se retrate”.
É improvável que o presidente mande
instaurar investigação ou se retrate. Primeiro, porque não há indício de
corrupção envolvendo a aprovação técnica das vacinas pela Anvisa a ensejar a
abertura de um inquérito policial. Segundo, porque este é exatamente o modus
operandi do presidente da República: a Bolsonaro não interessam os fatos,
interessa apenas lançar mentiras e teorias conspiratórias no ar para que elas
circulem no esgoto das redes sociais e dos aplicativos de mensagem, onde ganham
vida própria e excitam a base de apoio radical ao presidente.
Bolsonaro desconhece limites legais,
institucionais e morais para fazer valer seus interesses particulares. A
acusação infundada contra os servidores da Anvisa é uma pequena amostra do que
ele será capaz de fazer neste ano eleitoral, quando o que está em jogo é a
continuidade de seu projeto pessoal de poder.
A PM não é uma força incontrolável
O Estado de S. Paulo.
Conter a cooptação de forças do Estado para
satisfazer interesses políticos particulares é, antes de tudo, salvaguardar o
regime democrático no Brasil
O comando da Polícia Militar (PM) do Estado
de São Paulo publicou uma diretriz no dia 27 de dezembro para disciplinar o uso
de redes sociais e aplicativos de mensagem por policiais militares. O
regramento das manifestações públicas dos militares do Estado é uma oportuna
medida neste ano eleitoral.
Ao longo de sua vida pública, o presidente
Jair Bolsonaro deu mostras de que não mede esforços – não raro violando as leis
e a Constituição – para engajar as forças de segurança pública em seu projeto
de poder. Portanto, conter a cooptação da força de segurança ostensiva do
Estado para satisfazer interesses políticos particulares significa, antes de
tudo, salvaguardar o regime democrático no Brasil.
A diretriz da PM paulista proíbe
manifestações “políticas, reivindicatórias ou depreciativas” a outras instituições
e órgãos públicos nas redes sociais e aplicativos de mensagem, como Whatsapp e
Telegram. Também veda aos policiais militares, da ativa e da reserva, publicar
imagens de símbolos, fardas e armas como forma de autopromoção. “Os PMS devem
estar cientes de que seus comportamentos nas redes sociais podem afetar a
credibilidade de seu trabalho, da instituição e do Estado”, afirmou o
comandante-geral da PM paulista, coronel Fernando Medeiros.
As novas regras estabelecidas pelo
Estado-maior da PM de São Paulo ainda impedem a chamada monetização dos canais
dos policiais militares, sobretudo no Youtube. Há casos de PMS que exploram
símbolos e equipamentos da corporação em vídeos que divulgam até mesmo
operações policiais. O objetivo é atrair seguidores e, assim, aumentar o
engajamento e a remuneração por visualizações. Ou bem se é policial militar ou
celebridade da internet.
Além dos próprios méritos, o acerto da
diretriz da PM paulista também pode ser atestado pela reação que provocou em
próceres do bolsonarismo, a começar pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O
filho “03” do presidente da República repudiou as restrições impostas aos
policiais militares paulistas e afirmou que, “se a Ditadoria (sic) quer o apoio
da PM, basta cumprir com suas promessas”. O deputado Capitão Augusto (PL-SP),
outro nome ligado ao bolsonarismo, alegou que a publicação da nova diretriz “é
ato típico de estado totalitário ditatorial”, seja lá o que isso signifique.
Ambas as reações revelam a má concepção do
papel da PM por parte dos bolsonaristas que desejam cooptá-la como força
política, como se o Estado Democrático de Direito se sustentasse como tal
havendo militantes políticos no seio de instituições que detêm o monopólio do
uso da violência.
Ao longo do ano passado, o País assistiu
estarrecido ao comportamento indigno e inconstitucional de alguns policiais
militares, incluindo oficiais de alta patente, a partir de uma visão muito
deturpada do que vem a ser liberdade de expressão. Absurdos, quando não crimes,
foram cometidos em nome dessa garantia constitucional. Em países democráticos
como o Brasil, polícia e política são como água e óleo. Tudo o que é feito
dentro da lei para manter essa separação é muito salutar. A Polícia Militar,
nunca é demais reforçar, é uma instituição de Estado, que atravessa sucessivos
governos. Não se presta à balbúrdia e à insubordinação nem tampouco se pode
deixar levar pelas paixões inerentes às lides políticas.
No dia 6 passado, o comandante-geral do
Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, também publicou diretriz
para disciplinar o comportamento de suas tropas nas redes sociais, atualizando
normas determinadas por seu antecessor, o general Edson Leal Pujol, em março de
2020. Mais do que as manifestações de natureza política, já vedadas pela
legislação militar, a preocupação do general Paulo Sérgio é a disseminação de
notícias falsas não só por militares, como também por seus familiares. O
general Paulo Sérgio determinou ainda que os militares devem se vacinar contra
a covid19, salvo “casos omissos”, que deverão ser tratados pelo
Departamento-geral do Pessoal (DGP) do Exército. Tratase de um claro sinal de
afastamento do Exército de temas caros a Bolsonaro.
Capitólio cabloco
Folha de S. Paulo
Forças Armadas se previnem contra o risco
de Bolsonaro querer emular Trump se perder a eleição
No dia 6 passado, completou-se um
ano do infame episódio em que manifestantes incitados pelo então
presidente Donald Trump invadiram o Capitólio em Washington, o mais sagrado
templo da democracia norte-americana.
Além do rastro de destruição e das cinco
mortes ocorridas, o episódio gerou uma ampla investigação para localizar e
punir seus perpetradores. No futuro, Trump pode vir a engrossar a lista.
O que faziam os bárbaros? Buscavam
inviabilizar a sessão do Congresso que ratificaria a vitória do democrata Joe
Biden sobre o republicano, no novembro anterior.
Além de toda a retórica incendiária de que
o pleito havia sido fraudado, refutada de ação em ação, Trump montou um
palanque em frente à Casa Branca e reuniu suas hordas para criticar até seu
vice, Mike Pence, presente à sessão.
A sedição proposta virou um roteiro para o
bolsonarismo, um filhote bastardo do trumpismo. O presidente do Brasil nunca
escondeu sua admiração pelo americano, disse sem provas que a eleição nos EUA
havia sido roubada e que o Capitólio poderia se repetir aqui.
Parte significativa do entorno que ajudou a
gestar Trump, a começar pelo ex-assessor Steve Bannon, é frequentadora
dos ambientes reais e virtuais do clã presidencial —o filho Eduardo
estava em Washington no dia da invasão.
Como a cruzada de Jair Bolsonaro contra a
urna eletrônica e a crise institucional levada ao paroxismo
no 7 de Setembro provam, não terá sido por falta de aviso se o país
tiver de enfrentar uma turbulência análoga à americana neste 2022.
Se Bolsonaro parece mais domesticado após
ter aderido ao centrão para salvar seu governo, é ocioso dizer que sua posição
frágil em pesquisas sugere uma radicalização no decorrer da campanha.
Até as Forças Armadas, que o presidente vê
como um de seus esteios, já perceberam isso. Como
mostrou esta Folha,
o Exército decidiu adiantar o cronograma de todos seus 67 exercícios militares
do ano.
Eles deverão acabar até setembro, liberando
a tropa para eventualidades a seguir. Generais minimizam o risco de uma versão
cabocla do Capitólio e falam mais em risco de confrontos na polarização, mas o
fantasma está posto.
Ele pode se materializar de várias formas,
como numa negativa do presidente de intervir em um conflito estadual, já que o
emprego dos fardados é sua prerrogativa. Isso poderia levar a uma judicialização
inédita da questão, com consequências institucionais funestas.
Após passarem três anos negando aventuras
golpistas do chefe cujo governo ajudaram a montar, é alvissareira a sinalização
militar. Espera-se que ela se mantenha firme e na linha da constitucionalidade.
Livre negociação
Folha de S. Paulo
Em meio a judicialização, locadores e
inquilinos têm liberdade para escolher indexador de contratos
Entre os inúmeros desequilíbrios provocados
pela pandemia, milhões de inquilinos de imóveis no país vêm arcando com
reajustes salgados em seus aluguéis por conta da disparada do indexador mais
comum nesse tipo de contrato.
Herança do período de inflação descontrolada,
a aplicação do IGPM (Índice Geral de Preços - Mercado) em acordos formais é
agora contestada na Justiça, que, em muitas decisões recentes, tem
determinado a sua substituição pelo índice oficial de inflação, o Índice de
Preços ao Consumidor Amplo.
Diferentemente do IPCA, que calcula a
oscilação final de preços aos consumidores, o IGP-M avalia esse comportamento
nas etapas anteriores, ou seja, ao longo da cadeia produtiva, nas relações
entre produtores, distribuidores, varejistas e outros participantes. Assim, o
índice acaba incorporando muito da variação do dólar, que indexa preços de commodities
e matérias-primas importadas.
A pandemia e a disparada de 40% da moeda
norte-americana nos últimos dois anos alargou a diferença entre os dois
índices. Em 2021, para um IPCA (calculado pelo IBGE) de 9,26%, o IGP-M (da
Fundação Getulio Vargas) subiu 17,78%.
O Supremo
Tribunal Federal adia desde abril do ano passado o julgamento de uma
ação que pede para a corte determinar que o reajuste no aluguel de imóveis com
contratos pelo IGP-M se dê pelo IPCA. Também tramita no Senado projeto de lei
na mesma direção.
A própria FGV
prevê lançar em breve um novo índice que melhor reflita as relações
entre locadores e locatários, pois o IPCA também não é considerado ideal
—especialmente por desconsiderar que os donos dos imóveis deveriam esperar
alguma remuneração sobre o capital imobilizado e não apenas a correção do
aluguel pela inflação.
Uma das ideias é fazer parcerias com
imobiliárias e sites especializados para ter acesso a um fluxo constante de
dados em contratos, de modo a ter um indicador mais realista e baseado no
mercado.
Neste ano, espera-se uma convergência entre
o IGP-M e o IPCA ao final do primeiro trimestre, fato que tende a diminuir
muitos dos conflitos em torno do assunto.
De qualquer modo, proprietários e inquilinos
são livres para negociar qualquer indexador. O ideal é que essa escolha
considere sobretudo as expectativas das partes e a destinação do imóvel
—deixando para trás o ato corriqueiro de copiar e colar regras ultrapassadas.
Clima piora e põe em dúvida resultados da
agropecuária
Valor Econômico
Pode não vir da agropecuária o esperado
alívio na inflação
A expectativa de que a agropecuária possa
salvar o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano, evitando uma dolorosa recessão,
está sob ameaça. A piora das condições climáticas está pondo em risco a safra
recorde, dada como certa há algumas semanas. A produção de grãos, de leite e
até a pecuária vem sendo prejudicada por um clima mais desfavorável do que o
registrado no início do plantio da safra 2021/22. O ano passado começou bem no
campo, mas terminou mal. Agora, o risco é que já comece negativo.
Conforme relatou o Valor (7/1), enquanto o
Paraná divulgava na semana passada uma estimativa para sua safra de grãos quase
40% menor do que a anterior, por conta da estiagem, o Tocantins, que integra a
fronteira produtora de soja conhecida como Matopiba, ao lado do Maranhão, Piauí
e Bahia, decretava estado de emergência pelo excesso de chuva. A chuva em
demasia causa problemas no desenvolvimento da soja e também dificulta a
colheita mecanizada.
O impacto negativo do fenômeno climático La
Niña era esperado. Começou em meados do ano passado e não chegou a prejudicar a
safra de soja, que já havia sido plantada e foi recorde. Neste ano, porém, as
consequências do La Niña se anteciparam e estão sendo potencializadas por outro
fenômeno, o aquecimento das águas do Atlântico Equatorial, que banha o
Nordeste.
Antes dessa virada do clima, as previsões
feitas há um mês eram bastante positivas. A Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) projetavam
safra recorde. A mais recente estimativa da Conab era de produção de grãos com
volume recorde de 291,1 milhões de toneladas, 15% superior ao de 2020/21,
quando a lavoura de milho foi afetada pela falta de chuvas, e de aumento da
área cultivada. Na estimativa do IBGE, que compreende o ano fechado, a safra
também seria superior à de 2021 em 10% para 278 milhões de toneladas, e o clima
era considerado favorável.
Estimativas mais atualizadas do efeito
climático adverso na produção agropecuária serão divulgadas pela Conab nos
próximos dias, mas o Valor apurou
junto a consultorias privadas que a colheita brasileira de soja não vai atingir
novo recorde, mas sim vai encolher de 11 milhões a 14 milhões de toneladas na
comparação com 2020/21, resultado puxado principalmente pelos problemas no
Paraná. No Rio Grande do Sul, as perdas parecem mais severas nas culturas do
milho e do arroz. O clima afeta também a pecuária e a produção de lácteos, ao
influenciar a disponibilidade de alimentos para os rebanhos nos locais já
mencionados e em Minas Gerais.
O novo quadro pode frustrar a expectativa
de que a agropecuária poderia sustentar a economia neste ano, evitando a temida
recessão. A agropecuária representava 6,8% do PIB no terceiro trimestre do ano
passado, segundo o IBGE, e o agronegócio, ao redor de 27%, de acordo com a
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em novembro, o Bradesco
chegou a estimar em 5% o crescimento do PIB agropecuário neste ano. Pouco antes
do Natal, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) falava em
crescimento de 2,8%. Depois disso, porém, os efeitos do fenômeno climático La
Niña se intensificaram, causando forte estiagem nos Estados do Sul e no Mato
Grosso do Sul, e chuvas abundantes em Tocantins e Bahia, pondo em dúvida as
projeções.
A eventual redução da produção, por outro
lado, tende a manter elevados os preços dos produtos agropecuários, tornando-se
uma resistência à esperada redução da inflação. A CNA alerta para a expectativa
de aumentos nos preços dos insumos, como fertilizantes, defensivos, combustíveis
e até do crédito rural, que ficarão mais caros com a elevação dos juros e com o
câmbio pressionado.
No ano passado, os alimentos já foram um
dos fatores importantes de alta da inflação. A alimentação em domicílio
acumulou em 2021 até novembro alta de 9,66%, até acima dos 9,26% registrados no
mesmo período pelo IPCA. Outro indicador mostra alta até maior. O preço das
commodities agropecuárias - carne de boi, carne de porco, algodão, óleo de
soja, trigo, açúcar, milho, arroz, café, suco de laranja e cacau - capturado
pelo IC-Br pelo Banco Central (BC) teve alta de 45,23% no ano passado.
O quadro indica que pode não vir da
agropecuária o esperado contrapeso na atividade econômica ao impacto negativo
já esperado do lado da indústria, nem algum alívio importante na frente da
inflação.
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