O Globo
Nossa guerra interna, no Brasil, é
sobretudo contra a morte de crianças, pobres e pretos
Confesso que não esperava ver nos jornais
notícias de uma guerra como essa entre Rússia e Ucrânia. Concordo que é preciso
acompanhá-la de perto, para tentar descobrir suas origens e a justiça delas.
Para saber sobretudo como podemos ajudar o mundo a se livrar de episódios
insensatos como esse.
Menos glamourosa que a invasão da Ucrânia pelo Exército russo, uma outra notícia falou das contas de bilionários em 2021. Pois, por essas novas contas, Mark Zuckerberg, o jovem proprietário da Meta, dona do Facebook, caiu para o 14º lugar no ranking dos ricos festejados pela revista Fortune. Mas Zuckerberg não precisa sofrer horríveis pesadelos por causa disso. Esse acidente em suas finanças não significa que periga ele ter que passar o chapéu na missa de domingo para ver se recupera um pouco o valor de seu cofre. Ele pode continuar a levar a vida que levou até agora, um pouco mais discretamente para não escandalizar ninguém, até recuperar a posição do Facebook e de seus irmãos digitais.
Como a notícia é divulgada pela imprensa em
geral e pelas redes sociais em particular, parece até que o céu vai cair sobre
a cabeça de Zuckerberg. Nosso amado capitão fez movimento parecido, com o sinal
trocado, quando mandou espalhar pelos mesmos jornais, noticiários de TV e redes
sociais, além de documentos oficiais, a notícia de que sua iluminada visita a
Moscou impediu a declaração de uma Terceira Guerra Mundial, a ser iniciada com
um embate entre Rússia e Ucrânia.
Apesar de todo mundo saber que a Ucrânia é
uma “potência pós-digital”, com uma posição privilegiada no universo “figital”
(físico e digital), reconhecida do Vale do Silício ao mundo inteiro, o Banco
Central Europeu se comportou como se estivesse diante de um modestíssimo
cliente e não do país que encabeça, por exemplo, a lista global de serviços em
TI. Segundo o próprio governo ucraniano, o número de profissionais
especializados que trabalham para empresas de fora do país passa de 200 mil.
Nem por isso estaria justificada uma intervenção militar russa para controlar o
país, qualquer que seja o pretexto usado por Putin. Incluindo o medo da Otan e
o perigo de sua proximidade de Moscou. O mundo inteiro vive hoje desse jeito. E
daí?
O atual presidente da Ucrânia é Volodymyr
Zelensky, um comediante estrela da televisão ucraniana. É mais ou menos como se
tivéssemos eleito por aqui nosso inesquecível Chico Anísio que, com sua cultura
política, seu interesse pelo país e o papel que exerceu com seus conhecimentos
no rádio, na televisão e no cinema, seria um excelente gestor de valores
nacionais. Aliás, Ary Barroso exerceu esse papel no Brasil pós-Vargas.
Não estou pedindo apoio a Zelensky, eu
mesmo não conheço nada de sua produção pessoal. Estou só tentando lembrar que
ele pode ser representante de uma linha de pensamento político na Ucrânia que
não é nada vulgar e que merece um certo respeito.
Nossa guerra interna, no Brasil, é
sobretudo contra a morte de crianças, pobres e pretos. Como Agatha, de 8 anos,
que foi morta com um tiro pelas costas, sentada no carro em que ia para casa
vinda da escola. Quem atirou nela foi um PM que dizia estar se livrando de um
ataque de bandidos do Complexo do Alemão, um dos bairros mais “perigosos” do
Rio de Janeiro. Os pais de Agatha recusaram ajuda financeira do estado para
sepultar a filha e até hoje esperam por justiça. Na época do assassinato, o avô
de Agatha deu uma clara e generosa declaração à imprensa: “Isso é confronto?
Minha neta estava armada? A arma que ela amava usar era o lápis com que
escrevia e desenhava os deveres do colégio”. E Agatha era negra e pobre, como o
policial que a matou.
E, antes que a gente passe insensível pelo
evento, essa semana morreu um dos maiores cineastas do Brasil, um dos mais
destacados e reconhecidos gênios do cinema latino-americano, Geraldo Sarno. De
Covid.
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