O Estado de S. Paulo
Pode ele reconhecer os erros, corrigir sua
trajetória e se empenhar em entender as necessidades vitais do povo brasileiro?
A conduta do presidente assusta o Planalto
e desafia seus opositores, pois parece haver consenso entre as elites
dirigentes. Ou ele muda de atitude – para de provocar controvérsias
irrelevantes, de se opor a pautas majoritárias na população, para de hesitar
diante de decisões vitais para a parte mais vulnerável do eleitorado, e começa
a governar seriamente – ou não chegará ao segundo turno.
Interpretar suas motivações parece ser
urgente. Mas não se pode abrir a cabeça das pessoas e observar o que se passa
lá dentro. Para entender o comportamento de um político, antes de especular
sobre conversas de bastidores ou declarações de intenções, convém observar... o
seu comportamento.
Muitos são os registros das condutas de
Jair Bolsonaro como oficial do Exército e como parlamentar, e acompanhamos seu
comportamento público durante três anos de mandato presidencial. As questões
relevantes a observar nessas funções seriam: saber se seu comportamento segue
um padrão ou é errático; em que consiste esse padrão, se houver; e qual é seu
objetivo.
É preciso saber se existe continuidade de padrão entre essas funções ou em que consistiriam as eventuais mudanças de padrão e de objetivo. Resta, ainda, saber se é possível o presidente alterar sua conduta, tornando-a compatível com uma candidatura competitiva no segundo turno de 2022.
A análise dessas observações suscita um
conjunto de hipóteses sobre o comportamento futuro do candidato. Sua conduta,
nos três casos, segue um padrão definido, embora à primeira vista pareça ser
errática: em todos os casos, destacam-se a revolta contra a autoridade, a total
ausência de autodisciplina (cujo efeito é a aparência errática), sua submissão
a seus supostos liderados, uma espécie de enclausuramento na célula familiar
estendida (filhos, ex-mulheres, subordinados imediatos) – que eu chamaria de
“familialismo” –, além de uma atitude agressiva com 360° de azimute, contra
tudo e contra todos.
Sua conduta, nos três casos, só é errática
na aparência.
Ao contrário, apresenta um padrão definido,
faltando estabelecer se existe, em todos eles, um objetivo claro a ser atingido
e de que objetivo se trata.
Sua carreira no Exército é a mais obscura.
Do pouco que se sabe, dois objetivos se salientam, associados a dois de seus
padrões de conduta: legitimar sua revolta contra a autoridade como expressão de
uma suposta demanda coletiva do baixo clero militar e dar crédito à sua
pretensão de liderar uma parcela de seus pares. Relatos de seu ativismo
insubordinado e de sua atuação como porta-voz de demandas sindicais são
conhecidos.
No Parlamento, seu comportamento em
plenário comprova as ofensas, contra tudo e contra todos, como um objetivo
permanente e indiscutível. A falta de agenda legislativa e a ausência de
qualquer posto de liderança contrastam com o familialismo enraizado. O
familialismo não se limita às vantagens colaterais do mandato parlamentar,
trata-se de uma forma de exercício de poder, que traça “quatro linhas”, dentro
das quais não há limites para a conduta dos poucos escolhidos e fora das quais
a sobrevivência exige total submissão.
Na carreira de chefe do Executivo, os fatos
comprovados são abundantes e compartilhados diuturnamente por todos nós. Sua
revolta contra a autoridade é patente, seja diante de instituições superiores,
como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, seja diante dos entes
federados. O mesmo quanto às prerrogativas de carreiras de Estado e órgãos
autônomos da administração pública, tais como agências, autarquias ou órgãos
encarregados da ordem pública e da defesa, além de sua desconsideração dos
obstáculos imaginários ou reais a suas birras.
A falta de autodisciplina alcança outro
patamar na Presidência. Sua oscilação entre ativismo verbal e paralisia
decisória afeta questões de vida e morte, como a fome, o desabrigo e a vulnerabilidade
ante a pandemia, num contexto de imprevisibilidade dos rumos da economia.
A inversão de papéis entre o mito e a
realidade de sua subordinação às agendas que lhe são impostas por seus supostos
seguidores é outro de seus padrões de comportamento. Ela ocorre tanto com
agendas de seus pequenos grupos de interesses – religiosos, profissionais ou
sindicais – quanto para sua relação com o chamado Centrão, cujos objetivos hoje
predominam sobre as iniciativas presidenciais.
Quanto ao familialismo, bastaria citar
todos os imbróglios compartilhados entre a família presidencial e a Polícia
Federal, a Abin, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o STJ, o Coaf, para
entender o que significam as “quatro linhas” dentro das quais o presidente
admite operar.
Aparentemente disparatados, os objetivos da
conduta presidencial redundam, na prática, em substituir o aparato
constitucional da República pelos devaneios de um candidato a déspota.
Pode ele reverter um padrão de conduta tão
arraigado? Reconhecer os erros, corrigir sua trajetória e se empenhar em
entender as necessidades vitais do povo brasileiro? Se disso depender seu
acesso ao segundo turno, pode esquecer.
*Professor titular de Ciência Política da
USP
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