domingo, 27 de fevereiro de 2022

Míriam Leitão: Cenas do passado e desordem mundial

O Globo

O ultraje e a infâmia que o mundo tem visto, com tropas russas na Ucrânia, trouxeram a sensação de que o presente havia sido tragado pelo passado, para as cenas de horror como a dos tanques soviéticos ocupando Praga, em 1968, ou o tempo ainda mais primitivo das guerras medievais de conquistas de território. O que aconteceu tem efeitos concretos para o mundo e para o Brasil, na política e na economia. O péssimo governo brasileiro se refletiu no vexame de uma diplomacia que levou dois dias para acertar o tom.

No curto prazo, a crise criada pela Rússia piora muito a conjuntura, segundo o economista José Roberto Mendonça de Barros. A guerra vai elevar os custos de vários produtos. De fertilizantes a combustíveis, de trigo a alumínio. E se a Ucrânia não puder plantar a próxima safra, que se inicia ao fim do degelo? Se o país estiver desorganizado, pela guerra imerecida e indesejada, cairá a oferta de milho e trigo. A Rússia sob sanções também terá mais dificuldades de vender seu trigo. Bielorrússia, de onde partiram os ataques a Kiev, é fornecedora de fertilizante, como Rússia e Ucrânia. Não haverá boa safra sem os três países.

— No curto prazo o estrago é gigantesco. Primeiro porque o conflito ocorre quando ainda não se chegou ao fim da pandemia. As cadeias produtivas globais já estavam desorganizadas e agora devem piorar. Os preços de todas as commodities subirão: grãos, metais, petróleo e gás. Isso será uma pressão significativa na inflação que já estava alta. Teremos menos comércio e menos PIB no mundo — resume José Roberto.

Arminio Fraga também alerta para a fragilidade do momento.

— Isso tudo está pegando o mercado financeiro meio numa bolha. A bolha do dinheiro de graça. Essa conjuntura estava começando a mudar. O mercado está numa fase de transição perigosa. Existia uma anestesia diante da ideia de que os juros ficariam baixos para sempre, e o mundo se alavancou muito — diz Fraga.
Na pandemia, a demanda de alimentos aumentou pelas transferências de renda para as famílias. Isso diminuiu os estoques. As sanções à Rússia vão afetar parte da oferta. Grandes países produtores têm tido problemas.

— A estiagem afetou a produção de soja no Paraguai, Argentina e Sul do Brasil. A seca foi muito mais forte do que o previsto e pelo menos 10% da safra brasileira foi perdida. Isso significa que a safra no Hemisfério Norte, que vai ser plantada agora, não pode dar errado — diz José Roberto.

O preço do trigo será certamente afetado. O Brasil consome 11 milhões de toneladas e só produz metade disso. Mesmo nas commodities que o Brasil exporta, a pressão de preços encontrará uma inflação já elevada. O mundo está com inflação alta, e a nossa é mais alta ainda.

André Travassos, sócio da Lampert Advogados, e que tem empresas de fertilizantes entre os clientes, explicou ao jornalista Álvaro Gribel que o setor acompanha a guerra com o cabelo em pé.

— Nós somos totalmente dependentes de importação, produzimos muito pouco, muito aquém do que a gente precisa, e somos grandes produtores do agronegócio. Para se ter ideia, importamos 80% dos fertilizantes usados na produção agrícola. Nos fertilizantes com potássio, a dependência chega a quase 96%. Da Rússia vem quase 30%. E o agronegócio é o carro-chefe da nossa balança comercial.

Escrevi aqui sobre os erros da expansão da OTAN, mas nada do que acontece é aceitável. O que ficou claro é que Putin preparou friamente esse ataque à soberania da Ucrânia, sabendo que há pouco que o Ocidente possa fazer. Arminio acha que é possível — apesar das dificuldades operacionais — desligar a Rússia do sistema Swift de pagamento. E, de certa forma, Putin se preparou para esse isolamento, melhorando os indicadores macroeconômicos e neutralizando, em parte, as sanções financeiras.

— O comércio Rússia-China há oito anos era 90% em dólar e agora é apenas um terço — diz Arminio.

A diplomacia brasileira ficou dois dias sem condenar a invasão, posição imposta por Jair Bolsonaro ao Itamaraty e que, se fosse mantida, colocaria o país de costas para o Direito Internacional e para a Carta da ONU. Os problemas se espalham na política internacional e na economia. O momento continua sendo de extremo perigo.
As horas de dramática resistência dos ucranianos na Batalha de Kiev tornavam real a letra do hino nacional. “A Ucrânia ainda não morreu, nem a glória, nem a liberdade.”

 

Nenhum comentário: