Correio Braziliense, 26.2.2022
O verdadeiro teor da conversa privada entre
os dois em Moscou é um iceberg, não ficou restrita à venda de carne e à compra
de fertilizantes. Existe muita semelhança entre ambos
Todos os homens do Kremlin — os bastidores
do poder na Rússia de Vladimir Putin, de Mikhail Zygar (Vestígio), é um
livro-reportagem com detalhes reveladores sobre o círculo íntimo de Putin e sua
longa permanência no poder. É a história de um líder ardiloso e perigoso, mas
também de um grupo que assumiu o controle da Federação Russa. Putin “se tornou
rei por acaso”, levado ao poder por oligarcas e políticos regionais, que o
acolheram ao mesmo tempo em que manipulavam seus medos e ambições. Com o tempo,
demonstrou uma habilidade incomum para se manter no poder e assumir o controle
do grupo com mão de ferro, em meio a intrigas, conspirações e muita corrupção.
Putin assumiu com apoio do grupo de Boris Yeltsin, que promoveu reformas liberalizantes radicais, contra os comunistas, que ainda eram fortes no Parlamento, cujo candidato era Ievgeni Primakov, um antiamericano radical e revanchista. Ataques terroristas em Moscou e o conflito na Chechênia catapultaram a candidatura do ex-diretor da FSB, a antiga KGB. A imagem de líder jovem e modernizador, que seduziu o público doméstico, não convenceu o Ocidente. Seu projeto inicial de integração da Federação Russa à União Europeia, inclusive à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), foi rejeitado pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e pela primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel.
Essa rejeição, que considerou uma
humilhação, e a ambição de se perpetuar no poder levaram Putin à guinada
nacionalista e autoritária que vem marcando sua trajetória, inicialmente
alternando a Presidência e o cargo de primeiro-ministro com Dmitry Medvedev,
que presidiu a Rússia entre 2008 e 2012. A consolidação de seu poder se deu em
razão do apoio popular à ideia de restabelecer o status de potência mundial da
Rússia e à agenda conservadora dos costumes, da aliança com os militares e com
a Igreja Ortodoxa, e do controle dos meios de comunicação, dos órgãos de
segurança, do Ministério Público e do Judiciário.
É aí que nasce a empatia entre Putin e Jair
Bolsonaro, que ficou evidente na recente visita do presidente brasileiro à
Rússia. Há um terreno fértil para essa aliança política pessoal. Bolsonaro não
tinha um projeto político claro quando foi eleito, bafejado muito mais pela
sorte do que em razão de suas virtudes. Tem o mesmo discurso nacionalista, a
agenda conservadora, uma aliança religiosa fundamentalista, o apoio de setores
militares e do sistema de segurança, porém não controla os meios de comunicação
e o Judiciário.
O isolamento de Bolsonaro no Ocidente,
antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais líderes
mundiais, inclusive o presidente norte-americano, Joe Biden, faria de Putin um
parceiro natural na cena mundial, após a viagem a Moscou, não fosse a crise da
Ucrânia ter virado uma guerra quente. O verdadeiro teor da conversa privada
entre Bolsonaro e Putin é um iceberg ainda, não ficou restrita à venda de carne
e à compra de fertilizantes, estratégica para os dois países. Houve conversas
no âmbito da cooperação tecnológica e militar, na qual a Rússia, sim, pode vir
a fazer diferença. E, para a oposição, existe o fantasma da interferência de
hackers russos nas eleições.
Cooperação
O silêncio de Bolsonaro em relação à guerra
na Ucrânia é um sinal de que há, de fato, um pacto entre ambos, mal dissimulado
pela atuação do Itamaraty e do chanceler, Carlos França, durante a crise. Na
quinta-feira, Bolsonaro desautorizou o vice-presidente Hamilton Mourão, que
condenou o ataque russo por desrespeitar a soberania da Ucrânia. A nota do
Itamaraty pedindo a suspensão das “hostilidades” na Ucrânia, porém, não
condenou a invasão. O Itamaraty disse apenas que acompanha as operações
militares “com grave preocupação”.
A invasão da Ucrânia é o maior ataque de um
país europeu contra outro do mesmo continente desde a Segunda Guerra. Putin
ameaçou com “consequências nunca experimentadas na história” para quem
interferisse, o que pode fazer escalar o conflito, ainda mais com a reação da
Polônia, da Lituânia e da Suécia, que também têm históricas relações com o povo
ucraniano. É uma reação sem precedentes contra a Rússia, desde o fim da antiga
União Soviética. Entretanto, os países do G7 — Alemanha, França, Itália, Reino
Unido, Canadá, Japão e Estados Unidos — exigiram que o governo brasileiro
condenasse a invasão da Rússia à Ucrânia sem subterfúgios. No Conselho de
Segurança da ONU, o Brasil votou a favor da condenação.
Na viagem a Moscou, Bolsonaro havia
agradecido a Putin pela histórica oposição da Rússia à internacionalização da
Amazônia. Esse é um tema sensível para as Forças Armadas, principalmente o
Exército. Mas qual a razão de o vice-presidente Hamilton Mourão ter sido tão
enfático na condenação à invasão da Ucrânia, mesmo correndo risco de ser
desautorizado, como foi, pelo presidente Bolsonaro? Sem dúvida, devido ao
alinhamento do Alto Comando do Exército com o Ocidente nesta crise da Ucrânia.
Entretanto, existe outra fronteira de cooperação entre os dois países no âmbito
militar: a venda de equipamentos e transferência de tecnologia em áreas
estratégicas para a nossa indústria de Defesa.
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