domingo, 27 de fevereiro de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O custo da guerra

Folha de S. Paulo

Ataque à Ucrânia cria risco de quadro recessivo global, que impacta o Brasil

Com a ofensiva armada pela Ucrânia em curso e o anúncio de sanções econômicas à Rússia por parte das potências ocidentais, começam a se desenhar os impactos econômicos da guerra, que devem ocorrer em múltiplas frentes.

O primeiro e mais evidente é o salto das cotações de petróleo e gás, além de outras matérias-primas. No dia da invasão ao território ucraniano, o preço do barril de petróleo chegou a US$ 103, o maior desde 2014 —recuando quando ficou claro que o pacote de sanções europeias e americanas não atingiria o setor de energia.

Mesmo assim, a ação russa põe em risco as linhas de suprimento e, no caso do gás, a infraestrutura de transporte na Europa.

Com a maior inflação desde os anos 1980 e juros em alta no Ocidente, um choque adicional poderia levar a economia global a um quadro recessivo. Os bancos centrais teriam a inglória tarefa de endurecer a política monetária em meio à piora do emprego.

O problema será maior quanto mais tempo durar o conflito militar. No caso europeu, o encarecimento brusco do gás e, no pior cenário, a interrupção parcial ou total da oferta, implicaria forte contração da atividade industrial.

A outra frente de riscos advém justamente das sanções ocidentais, que se estendem ao bloqueio de transações com grandes bancos, empresas e oligarcas russos, controles de exportações de tecnologias sensíveis e outras medidas.

Por cálculo econômico, dada a dependência do gás russo em parte da Europa e o papel da Rússia no mercado mundial de alguns insumos essenciais, como fertilizantes, as sanções não incluem transações nas áreas de energia e agricultura.

Embora não seja suficiente para alterar a investida de Vladimir Putin, o custo para a economia do país será crescente. Caso o conflito se prolongue e cresça o número de vítimas, as sanções poderão ser ampliadas —no limite, até o bloqueio da compra de gás e petróleo.

Nesse caso, seria provável uma retaliação russa, que poderia interromper as vendas de fertilizantes, metais especiais e outros produtos críticos, com impacto negativo para o restante do mundo.

Cumpre não esquecer que, nessa hipótese extrema, a China provavelmente atuaria como compradora de última instância, garantindo o fluxo de dinheiro para Putin.

As consequências para o Brasil seguem essas linhas. Mais inflação e juros no mundo seriam ruins para o país, pois o fluxo de capitais para cá tenderia a ser menor.

Cotações de petróleo mais altas dificultariam a gestão doméstica dos preços dos combustíveis, o que reforçaria as tendências intervencionistas de Jair Bolsonaro (PL) e as ameaças aos cofres públicos.

Pandemia ou endemia

Folha de S. Paulo

Enquanto autoridades e cientistas avaliam status da Covid, restrições vão caindo

A redução acentuada do número de novos casos de Covid-19 no mundo, passado o pico vertiginoso produzido pela variante ômicron, e a queda da letalidade do coronavírus reforçam as expectativas de que, dois anos depois, a pandemia possa estar a caminho do fim.

Isso, ressalte-se, não significa a erradicação do vírus. Já há certo consenso entre pesquisadores de que o Sars-CoV-2 não será extinto no curto prazo, devendo, aos poucos, passar a afetar os humanos de forma similar a outros agentes infecciosos do cotidiano. Trata-se, pois, de buscar uma coexistência mais normal com o patógeno.

É dessa maneira que governos pelo mundo começam a encarar a questão. Nesta semana, o Reino Unido tornou-se a primeira grande economia europeia a remover as restrições contra o coronavírus.

Medidas como o autoisolamento dos infectados deixaram de ser obrigatórias, e mesmo pessoas com teste positivo podem frequentar lojas e usar o transporte público.

França, Espanha e Dinamarca seguem a mesma tendência, bem como alguns estados norte-americanos. No Brasil —onde, apesar do número de mortes ainda elevado, casos e internações estão em refluxo— autoridades discutem o fim do caráter pandêmico da doença e o abrandamento de restrições.

Cientistas, no entanto, ainda veem com cautela a possibilidade de a Covid deixar de ser classificada como uma pandemia (definida por uma situação de descontrole global de casos e óbitos) e passar a ser considerada uma endemia (no qual a estabilidade desses indicadores permite maior previsibilidade e melhor convivência com o vírus).

Discussões técnicas à parte, não se pode negar que, embora persistam discrepâncias graves nas taxas de vacinação mundiais, o avanço da imunização e os recordes de novas infecções impulsionadas pela ômicron asseguraram um alto nível de proteção populacional, especialmente contra as formas mais graves da enfermidade.

Nesse cenário, o controle da doença começa a deixar de ser uma preocupação central dos governos nacionais para se converter em mais uma tarefa da saúde pública, com foco voltado aos grupos mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos.

Talvez o coronavírus nunca venha a ser completamente eliminado do planeta, mas há boas razões para crer que o tempo das emergências públicas e medidas extraordinárias esteja perto do fim.

Clube-empresa já traz renovação ao futebol brasileiro

O Globo

Não seria exagero dizer que hoje os lances mais trepidantes do futebol brasileiro acontecem fora dos gramados. A lei do clube-empresa, que permite aos times passar de associações sem fins lucrativos para Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), trouxe um alento ao mercado esportivo, abrindo novas perspectivas para clubes afogados em dívidas. Cruzeiro, Botafogo e Vasco já decidiram adotar o modelo. No caso mais recente, o cruz-maltino está para fechar um negócio de R$ 700 milhões, que poderá se tornar o maior na História do futebol brasileiro.

É inegável a perda de protagonismo do futebol pentacampeão. Nossos melhores jogadores atuam no exterior. O país, maior celeiro de craques do mundo, virou exportador de jovens talentos. Os clubes nacionais estão quase todos falidos. Times com as finanças saneadas, como Palmeiras ou Flamengo, são exceções e, não à toa, têm se revezado nos pódios ultimamente. A exceção é o Atlético Mineiro, que se juntou ao seleto grupo dos papa-títulos e é campeão também de endividamento, com um rombo de R$ 1,3 bilhão. O próprio presidente, Sérgio Coelho, admitiu que, não fossem os “mecenas” particulares, o Galo estaria na Segunda Divisão, como o conterrâneo Cruzeiro.

O Cruzeiro se transformou no melhor exemplo dos danos que uma gestão desastrosa e amadora pode causar. Mergulhado numa crise administrativa e financeira sem precedentes, cumpre, em 2022, o terceiro ano na Segunda Divisão. Isso não significa apenas perda de prestígio, mas de renda, que só alimenta a debacle. Com a SAF, o Cruzeiro tentará se reerguer. Em dezembro do ano passado, o pentacampeão Ronaldo Fenômeno, que jogou na base do Cruzeiro, anunciou a compra do clube mineiro por R$ 400 milhões. O ex-jogador terá 90% das ações da SAF. O objetivo no médio e longo prazos é reequilibrar as finanças e reconduzir o time à elite do futebol.

De volta à Série A depois de purgar um ano na Segunda Divisão, o Botafogo também vislumbrou na SAF uma forma de recuperar o brilho de sua estrela. Na semana passada, o investidor americano John Textor desembarcou no Rio para tratar da compra de 90% da SAF do alvinegro. O plano é injetar R$ 400 milhões no clube, que já vem passando por reestruturação antes mesmo de selar o acordo definitivo.

Na mais recente movimentação, o Vasco, que engrena mais um ano na Segunda Divisão, fechou um acordo com a companhia americana 777 Partners, que passará a administrar o departamento de futebol do clube. O negócio ainda está sendo finalizado, mas as perspectivas para a torcida cruz-maltina são animadoras. A empresa propõe investir R$ 700 milhões para ficar com 70% da SAF do Vasco. Há expectativa também de que as negociações incluam a reforma do estádio São Januário, em São Cristóvão, o que ampliaria o valor do investimento.

Apesar do entusiasmo com a SAF, ela não significa um cheque em branco. Os clubes poderão receber investimentos, mas terão de oferecer uma gestão financeira responsável. A lei prevê contrapartidas sociais, maior transparência e regulação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O novo modelo poderá ser um ponto de inflexão na gestão lastimável do futebol brasileiro. Os clubes têm tudo para se tornar mais profissionais e competitivos. Espera-se que não desperdicem essa chance de virar o jogo.

Alerta global sobre maior risco de queimadas tem de ser ouvido no Brasil

O Globo

São estarrecedores os cenários de queimadas, naturais ou intencionais, descritos em relatório das Nações Unidas publicado na semana passada. De autoria de mais de 50 acadêmicos, o estudo Spreading Like Wildfire (Espalhando como Fogo no Mato) prevê que o risco de queimadas altamente devastadoras crescerá 57% até o final deste século se não forem limitadas drasticamente as emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa. Um esforço em linha com as metas do Acordo de Paris diminuiria o risco, ainda assim o manteria em patamar elevado: 52%. A previsão torna ainda mais urgente a necessidade de todos os países promoverem cortes na emissão de CO2 e outros gases poluentes.

O Brasil tende a ser particularmente afetado. Mantido o nível atual de aquecimento, a Amazônia será palco de mais queimadas. No Cerrado, onde se concentra a produção agrícola brasileira, a previsão é de elevação de temperatura, menor umidade e alteração no regime de chuvas. A região sofreria alta de 39% na área queimada mesmo num cenário otimista, de redução das emissões de CO2 que elevasse a temperatura média no mundo em 1,8 oC nas duas últimas décadas deste século, tendo como base o período entre 1986 e 2005. Se a humanidade limitar o aumento a apenas 1 oC, o prognóstico seria benigno, com redução de 11% na região devastada pelo fogo. Nesse caso, a Região Sul, o norte da Argentina e o Uruguai teriam mais chuvas, um clima mais úmido, portanto também menos incêndios.

Caso os cenários mais sombrios se materializem, são esperados mais dias como 19 de agosto de 2019, quando, no meio da tarde, o céu de São Paulo e do litoral paulista escureceu devido à união de uma frente fria e resíduos de queimadas no Norte e no Centro-Oeste. Pesquisas mostram que a fumaça provocada pelo fogo na Amazônia é responsável por quase 3 mil mortes prematuras anuais. O Brasil obviamente não está sozinho. Em algumas épocas do ano, Cingapura é tomada por uma névoa que invade o ar. É fumaça que vem da Indonésia, onde agricultores desmatam a floresta tropical.

Nem sempre fogo é sinônimo de ações criminosas. Exemplos de incêndios que saem do controle têm sido mais frequentes em vários países. Na Austrália, a combustão de florestas tem deixado um rastro de destruição. Notícias sobre incêndios na Califórnia se tornaram corriqueiras. A região oeste dos Estados Unidos passa pelo pior período de seca em 1.200 anos.

No Brasil, o clima seco dos últimos anos também propiciou o surgimento de queimadas naturais, mas o fator político é preponderante. Sob Jair Bolsonaro, o país vive o desmonte dos órgãos de controle e o apoio explícito a ações ilegais, como grilagem e garimpo. No atual governo, o número de incêndios e a extensão da destruição só fazem crescer. Não apenas na Amazônia, mas em outras regiões, como o Pantanal. Como mostra o estudo da ONU, isso precisa mudar imediatamente.

Procuram-se estadistas

O Estado de S. Paulo

Ao contrário dos medíocres líderes ocidentais, Putin tem objetivos definidos e determinação implacável. Mas também tem suas fraquezas e é possível explorá-las

Putin tem objetivos definidos e determinação. Mas também tem fraquezas.

Não há dúvida de que a invasão da Ucrânia pela Rússia foi amplamente planejada, mas certamente só aconteceu agora porque o momento não poderia ser mais favorável ao presidente russo, Vladimir Putin, por lhe oferecer uma conjunção de fraqueza, mediocridade e desarticulação no Ocidente.

Considere-se o G7. A Alemanha tem um governo de transição liderado por um chanceler que está aprendendo o ofício à sombra de uma estadista incomparável como Angela Merkel; o primeiroministro japonês é igualmente um neófito, reputado como bom administrador, mas de personalidade apagada; o líder italiano é também um tecnocrata competente, mas a política do país segue se consumindo em idiossincrasias partidárias; o primeiro-ministro canadense parece só ter olhos para sua agenda de costumes progressista; o presidente francês está embrenhado em sua disputa eleitoral; e o premiê britânico está enfraquecido pelos escândalos envolvendo festas privadas durante a pandemia.

Nos EUA, Joe Biden foi eleito como um representante experiente do establishment para uma missão de conciliação: construir pontes com os republicanos não intoxicados pelo populismo de Donald Trump e refrear os excessos dos radicais democratas. Mas não fez nem uma coisa nem outra. Seu principal desafio militar, a retirada do Afeganistão, foi um fracasso retumbante que debilitou a confiança de seus aliados e da população. Hoje sua popularidade está na lona.

Em contraste, como disse o historiador Paul Johnson, “Putin é o mais formidável potentado russo desde Stalin”, pois “tem um programa claro – reconstruir o império soviético – e é totalmente implacável em sua busca”. Treinado na KGB, comentou Johnson, “Putin é um mentiroso, falsificador e intimidador profissional, cujos instintos são uma mescla brilhante de desaforo e enganação”. Putin também tem a vassalagem da antiga hierarquia soviética e o apoio de uma parte importante da opinião pública. “Ele pode, portanto, posar como um populista e agir como um tirano.”

A política de confronto com o Ocidente, que agora atinge o seu pico, começou em 2007, quando Putin fez um discurso combativo na Conferência de Segurança de Munique. No ano seguinte, foi à guerra na Geórgia; em 2014, atacou a Ucrânia e anexou a Crimeia.

Tudo isso foi recebido no Ocidente com protestos protocolares, sanções inócuas e indiferença, o que certamente encorajou Putin a embalar seus sonhos de restabelecimento do império russo – sua permanência como “czar” já está garantida.

Putin tem a seu favor todo o estoque de arsenais legados pela URSS e imensos recursos energéticos. As antigas colônias soviéticas estão repletas de antigas lideranças desapropriadas e minorias étnicas relegadas à condição de cidadãos de segunda classe, aptas a serem intoxicadas pela nostalgia da Grande Rússia.

Mas Putin também tem suas fraquezas. É vaidoso, como mostram as suas fotos públicas de torso nu ou as cerimônias pomposas no Kremlin. E é dado a aventuras, manobras de alto risco e belicosidade imprudente.

A economia da Rússia é menor que a da Coreia do Sul. O parque industrial russo é atrasado. Os recursos das exportações de commodities são consumidos com os gastos militares e da cleptocracia no Kremlin. À população ele vende segurança e estabilidade após o caos dos anos 90, mas sua burocracia custosa e incompetente é incapaz de produzir qualquer melhora no padrão de vida.

Hoje sua popularidade está relativamente baixa e ele é confrontado por dissidentes ousados e expressivos, como Alexey Navalny. A distância entre o estilo de vida dos russos e o de populações prósperas no Ocidente aumenta e aumentará mais com as sanções econômicas. Mais importante, os russos veem os ucranianos como irmãos e quaisquer atrocidades durante a invasão serão recebidas com amargura e revolta.

Essas fraquezas podem ser exploradas, mas isso exigirá líderes capazes de amalgamar força, determinação e paciência, e sobretudo capazes de se unir em torno de prioridades claras. Para azar dos ucranianos, parece que esses líderes ainda não existem.

MP é autônomo, não inimputável

O Estado de S. Paulo

Decisão sobre o crime de prevaricação não traz nenhuma novidade. Magistratura e MP continuam com a mesma autonomia funcional – e com a mesma submissão à lei

Em decisão liminar, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o crime de prevaricação não se aplica aos membros do Ministério Público (MP) e do Poder Judiciário no exercício de suas atividades funcionais e com amparo na interpretação da lei e do Direito. A decisão veio preservar a liberdade de convencimento desses funcionários públicos, evitando a ocorrência do crime de hermenêutica. Não deve um juiz ou promotor sofrer punição criminal por aplicar, no exercício de suas funções, uma “orientação minoritária, em discordância com outros membros ou atores sociais e políticos”, disse Toffoli.

A rigor, a decisão não tem nenhuma novidade. O crime de prevaricação – “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” – já não era aplicável a juiz ou procurador que exerce sua liberdade de convencimento no cumprimento de suas atribuições funcionais. A autonomia funcional não é mera ficção. Tem efeitos concretos.

No entanto, como lembrou Toffoli na decisão, “isso não quer dizer que não poderá haver responsabilização penal de magistrados e de membros do Ministério Público em face de sua atuação ao agir com dolo ou fraude sobre os limites éticos e jurídicos de suas funções, ocasionando injustos gravames a terceiros e obtendo vantagem indevida para si ou para outrem”. A autonomia funcional de juízes e promotores não é uma espécie de imunidade irrestrita, como se cada um pudesse agir como bem entendesse. A lei continua valendo igualmente para todos. A decisão liminar apenas ratificou que o crime de prevaricação não incide sobre o exercício, dentro da lei, das atribuições funcionais da magistratura e do Ministério Público.

O caso não envolveu, portanto, nenhuma interpretação criativa da lei. Apenas se aplicou um dos princípios fundamentais do Direito, que assegura coerência ao sistema jurídico: o que está expressamente permitido não está proibido. Se o juiz pode interpretar a lei de acordo com seu íntimo convencimento, não cabe persegui-lo criminalmente em razão deste exercício de suas funções.

Vale lembrar que, ao longo dos anos, juízes têm recebido sanções administrativas dos respectivos tribunais em razão de aplicações dissonantes da lei. Ainda que não seja uma punição penal, trata-se de evidente tentativa de restringir a liberdade de magistrados, em forçada e atípica homogeneização das decisões judiciais. Para piorar, não raro, tribunais que aplicam sanções administrativas a juízes e desembargadores por discordância hermenêutica são contumazes descumpridores da jurisprudência das Cortes superiores.

Em relação ao Ministério Público, a situação é distinta. Em primeiro lugar, vigora na instituição uma compreensão especialmente ampla do que seria, na prática, sua autonomia funcional. São raríssimos os casos de sanção administrativa por causa da atuação profissional de procuradores. Além disso, as decisões judiciais são sempre fundamentadas e estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição. Eis a notável diferença com o Ministério Público: o que cada juiz faz está sempre submetido a um controle posterior. Por exemplo, a liminar de Toffoli sobre o crime de prevaricação será apreciada pelo plenário do STF. No Ministério Público, a dinâmica é distinta. Em muitas situações, o procurador tem a prerrogativa de dizer a primeira e a última palavra, o que contraria o princípio republicano de que não pode haver atuação do poder público sem o respectivo controle.

De forma similar ao que ocorre com a magistratura, a autonomia funcional do Ministério Público tem de estar sujeita a controle. Não é mordaça, tampouco coação. É decorrência da República, em que todos estão sujeitos à lei, também os agentes públicos. Seria grave equívoco, portanto, achar que a decisão de Toffoli impede que procuradores respondam por seus atos no exercício de suas funções. Omissão continua sendo omissão. Abuso continua sendo abuso. Lei continua sendo lei.

Brasileiros na Ucrânia: ‘Se virem’

O Estado de S. Paulo

Sem plano de saída, a embaixada brasileira em Kiev orienta que cada um se vire por conta própria

Eis o bolsonarismo em sua essência: Jair Bolsonaro não governa – descumpre as obrigações do cargo –, mas alardeia, nas redes sociais, informação falsa. No dia em que a Rússia iniciou seus ataques contra a Ucrânia, o presidente Bolsonaro disse, no Twitter, estar “totalmente empenhado no esforço de proteger e auxiliar os brasileiros que estão na Ucrânia”. Ainda assegurou que a embaixada em Kiev estava aberta e pronta para auxiliar “os cerca de 500 cidadãos brasileiros que vivem na Ucrânia e todos os demais que estejam por lá temporariamente”.

No entanto, a afirmação de Bolsonaro era falsa. Quem entrou em contato, na quinta-feira, com a embaixada do Brasil em Kiev recebeu informações bem diferentes. Era desaconselhado a ir até a representação diplomática e informado de que não havia como assegurar uma saída do país em segurança, o que foi confirmado pelo Itamaraty, em Brasília. Ou seja, não havia nenhum plano para proteger ou retirar os brasileiros da Ucrânia.

Conforme relatou o Estado, dois brasileiros que pediram auxílio para sair da Ucrânia receberam de um diplomata esta orientação: “Se virem”. Além de inusitada, a mensagem é rigorosamente desesperadora. O órgão do Estado brasileiro que deveria prover proteção a seus cidadãos reconhece seu despreparo diante da situação que, longe de ser uma surpresa, era há algum tempo uma possibilidade não desprezível. Basta ver que outros países já vinham retirando seus nacionais da Ucrânia, entre outras medidas.

A orientação “se vire” não é muito diplomática, mas contém, eis a dura realidade, uma profunda verdade. Diante do padrão de comportamento bolsonarista, trata-se de um conselho realista. Se depender de Jair Bolsonaro, não haverá Estado planejando e cuidando das pessoas. Se depender do bolsonarismo, cada um estará sozinho e desprotegido, abandonado às suas próprias forças. Foi assim com as enchentes na Bahia em janeiro. Foi – e continua sendo – assim durante a pandemia.

Não é apenas irresponsabilidade, o que já seria grave. O bolsonarismo debocha do País e dos brasileiros. Há evidentemente despreparo e ignorância, mas é também descaso, indiferença. Nada é levado a sério. Em sua visita a Moscou, Jair Bolsonaro chegou a dizer que, “coincidência ou não, parte das tropas (russas) deixaram a fronteira”, após o seu encontro com Vladimir Putin. A situação era de tensão, com risco de guerra, mas o presidente Bolsonaro preferiu fazer graça, difundindo informação falsa. E nada fez para proteger os brasileiros na Ucrânia.

A Presidência da República tem responsabilidades. Omissões do chefe do Executivo federal podem causar problemas graves, muitas vezes colocando brasileiros em risco de morte. Jair Bolsonaro segue, no entanto, alheio a tudo isso, achando-se autorizado a leviandades. Na visita a Moscou, disse que “Putin é uma pessoa que busca a paz”. Descaso com a verdade, descaso com as pessoas.

Que, apesar de Bolsonaro, o Estado brasileiro possa, com urgência, oferecer proteção e um plano de saída aos brasileiros na Ucrânia. •

 

Nenhum comentário: