O Estado de S. Paulo
Admirador de chefões autoritários, o presidente prefere passear de moto a falar sobre um ato de banditismo internacional
Dois chefões autoritários, um de direita,
outro com carteirinha de comunista, foram visitados e afagados pelo presidente
Jair Bolsonaro em sua última excursão fora do Brasil. O de direita, Viktor
Orbán, primeiro-ministro da Hungria, foi saudado num discurso de inspiração
fascista, com referência a valores comuns: Deus, pátria, família e liberdade.
Ao outro, Vladimir Putin, presidente da Rússia, Bolsonaro se declarou
solidário, apesar da conhecida ameaça de ataque à Ucrânia. A invasão, com
forças de terra, mar e ar, ocorreu na semana seguinte.
Atacada a Ucrânia, Bolsonaro evitou comentar o assunto, enquanto o Itamaraty publicava uma nota vergonhosa, conclamando as partes a “negociações conducentes a uma solução diplomática da questão”. O agredido tem de negociar com o agressor? Os dois são culpados pela violência? Não houve espaço ou tinta para uma palavrinha de censura a um ato de banditismo? O vicepresidente Hamilton Mourão fez uma declaração séria, comparando o ataque russo ao expansionismo nazista, mas foi desautorizado. “Quem fala sobre o assunto é o presidente da República”, disse Bolsonaro, mas quem esperou sua fala perdeu tempo.
Enquanto as tropas de Putin bombardeavam,
aterrorizavam e ocupavam a Ucrânia, na quinta-feira, Bolsonaro liderava um
desfile de motocicletas, a tal “motociata”, em São José do Rio Preto, no
interior de São Paulo. Tendo ido até lá para inaugurar um trecho de rodovia,
aproveitou para fazer campanha eleitoral e para exibir uma de suas
especialidades, o passeio de moto. Com ele estava o ministro da Infraestrutura,
Tarcísio de Freitas, conhecido usuário da garupa presidencial.
Será errado, no entanto, acusar Bolsonaro
de se dedicar principalmente a exibir o talento de motoqueiro. Também errará
quem o imagina empenhado em atividades típicas de um presidente, como
administrar o País, planejar, negociar e executar políticas de modernização, de
crescimento econômico e de inclusão social. Outras prioridades são muito mais
visíveis em sua pauta. Sobra pouco tempo para atividades mais corriqueiras,
como governar, quando é preciso cuidar da reeleição, evitar investigações
inconvenientes para a família, fugir de conversas sobre rachadinhas e, é claro,
satisfazer com dinheiro público o apetite do Centrão.
Quem se ocupa de assuntos tão importantes deve
ter pouco tempo para questões como a invasão da Ucrânia. Ataques armados e
violações territoriais podem ter relevância para a ordem global e para dezenas
de economias, incluída a brasileira, mas nenhum presidente pode cuidar de tudo.
Guerra, no entanto, é assunto importante na agenda presidencial brasileira. Não
a da Rússia contra um país vizinho, ex-integrante da União Soviética, mas a
guerra pessoal de Bolsonaro contra um conjunto de adversários – o governador de
São Paulo, os defensores da vacinação obrigatória, os outros candidatos à
Presidência, o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e,
de modo mais amplo, as instituições democráticas e republicanas.
“Não vamos perder essa guerra”, disse o
presidente, há poucos dias, em mais uma crítica estapafúrdia à urna eletrônica
e, por tabela, ao TSE. Naquele momento, o amigo Putin, apoiado também por
Donald Trump, ainda se preparava para ordenar a invasão.
A referência à guerra com o TSE foi parte
de um discurso a empresários e investidores financeiros, em São Paulo.
Bolsonaro afirmou, quase aos berros, a disposição de brigar para se manter na
Presidência. Só Deus, disse ele, conseguirá tirá-lo do Palácio do Planalto. Não
contou detalhes dos planos divinos, mas fez uma insinuação ameaçadora ao falar
de uma possível vitória petista. Vencedor, disse o presidente, Lula revogará o
teto de gastos e a reforma trabalhista. “É isso que nós queremos para o Brasil?
Dá para deixar tudo rolar numa boa, quem chegar chegou?”
Bolsonaro pode estranhar, mas isso é o
normal numa democracia. Nesse regime, quem chegar chegou. Contados os votos, o
vitorioso toma posse. O vencido aceita o resultado e, se achar conveniente, vai
para a oposição. Essa é a rotina, principalmente quando o processo eleitoral é
moderno e comprovadamente seguro, como no Brasil. Mas ele perguntou se “dá para
deixar tudo rolar numa boa”.
Essa pergunta deveria inquietar qualquer
democrata, como devem ser, espera-se, os participantes do encontro em São
Paulo. Alguém, dentre eles, terá achado inconveniente “deixar tudo rolar”, se o
mais votado for um candidato fora de suas preferências?
Enquanto Bolsonaro trata de interesses
pessoais e familiares e rosna para as instituições, os brasileiros enfrentam
desemprego elevado, inflação acelerada e economia emperrada. Os desempregados
eram 11,1% da força de trabalho no trimestre final de 2021. A inflação chegou a
10,38% nos 12 meses até janeiro. As projeções de crescimento econômico para
este ano raramente superam 0,5%. Não basta, enfim, ser admirador e imitador,
tanto quanto possível, de Trump, Orbán e Putin. Uma boa dose de incompetência
pode completar um conjunto harmonioso.
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