sábado, 26 de fevereiro de 2022

Carlos Góes: Funcionalismo na década perdida

O Globo

Boa parte das carreiras federais ganha mais que o cidadão médio. E as privilegiadas pelo presidente tiveram os maiores aumentos

No último mês, eclodiram reivindicações salariais no funcionalismo federal. Frente a uma proposta ventilada pelo governo de conceder reajuste salarial aos policiais federais e policiais rodoviários federais, outras categorias reagiram.

Houve protestos em Brasília. Os servidores do Banco Central paralisaram suas atividades. Ministros do Supremo Tribunal Federal alertaram que reajustes para categorias particulares poderiam gerar uma série de ações na Justiça.

Mas como o salário dos servidores públicos se compara ao resto dos contribuintes?

Os dados mais abrangentes sobre a renda de profissões distintas vêm da Receita Federal. Todo ano, a Receita processa os dados do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) e publica tabulações contendo a renda média declarada por ocupação dos declarantes.

Como os dados incluem toda a população tributária, eles têm um grau de precisão e granularidade muito maior do que aqueles vindos de pesquisas em domicílio. Mas eles também têm suas particularidades.

A primeira é o fato de que nem todo mundo declara IRPF no Brasil. Na verdade, quase ninguém fora do quinto mais rico declara renda. O contribuinte médio do IRPF, portanto, não é o brasileiro médio. O contribuinte médio tem uma renda mensal média de R$ 9,7 mil, enquanto o brasileiro ganha em média R$ 2,6 mil por mês.

E os funcionários públicos? Há uma variação muito grande entre as carreiras. Mas muitas delas estão no topo da distribuição de renda.

Em 2020, dado mais recente da base da Receita, militares das forças federais ganharam, em média, R$ 12 mil por mês, em valores atualizados pela inflação. Policiais civis (federais e estaduais), R$ 15,5 mil. Servidores do Ministério Público, R$ 16 mil. Professores de ensino superior, R$ 17 mil. Servidores do Legislativo e Judiciário (federais e estaduais), R$ 19 mil. Servidores do Banco Central, R$ 33 mil. Advogados do setor público, R$ 35 mil. Diplomatas, R$ 50 mil. Juízes, desembargadores e ministros do Judiciário, R$ 58 mil. Promotores e procuradores, R$ 61 mil.

Alguns detalhes importantes. Primeiro: essa conta inclui todas os rendimentos, tributáveis e não tributáveis, mesmo que eles não sejam o salário dos funcionários públicos. A vantagem de trabalhar com esse número é que ele inclui penduricalhos, como auxílios que são isentos de imposto. Caso haja tentativa de compensar perda de salário com esse tipo de mecanismo, esse dado não é afetado.

Além disso, cada carreira tem suas particularidades. Por exemplo, diplomatas aparecem entre as carreiras que mais recebem. A remuneração deles de fato é muito boa, mas o valor que aparece na base da Receita tem uma distorção para cima, uma vez que os diplomatas que moram no exterior ganham em dólar, mas declaram IRPF o equivalente em real, hoje desvalorizado.

Essa é a fotografia do momento: diversas categorias do funcionalismo ganham mais do que o contribuinte médio, que, por sua vez, já é bem mais rico que o brasileiro médio. Mas qual foi a evolução desses salários ao longo da última década?

Antes de mais nada, um pouco de contexto. Os últimos dez anos incluem duas grandes crises: a Crise da Nova Matriz Econômica (2014-16) e a Recessão do Coronavírus (2020). Houve ampla perda de renda e de emprego durante esses períodos. Também por isso, a renda real (isto é, ajustada pela inflação) do contribuinte médio caiu 2,1% entre 2011 e 2020.

Entre funcionários públicos, os principais ganhadores foram delegados e policiais, com um ganho real de quase 24% no período. Também se destacam: servidores do Ministério Público e Judiciário, com ganhos de 14% a 17%; e militares, com ganhos reais entre 4,6% e 12,6%, a depender da Força.

Juízes e promotores/procuradores, que têm seus rendimentos perto do teto do funcionalismo público, tiveram queda de 6,8% e 3,2% no período, respectivamente. Portanto, observa-se que a decisão política de reajustar o teto do funcionalismo abaixo da inflação na última década alcançou o resultado desejado, contendo o aumento dos supersalários.

Por causa da legislação eleitoral, o governo tem de decidir sobre reajustes salariais até março. Neste debate, é importante ter o contexto acima em mente. Boa parte das carreiras federais já ganha muitas vezes mais que o brasileiro típico. E as carreiras privilegiadas pelo presidente Bolsonaro são justamente aquelas que já tiveram os maiores aumentos na última década.

 

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