O Estado de S. Paulo
Quando há um conflito, a vida de gente comum é atropelada pela geopolítica
Numa crônica publicada na última edição da
revista Monocle, o escritor ucraniano Artem Chekh descreve um passeio pela
noite de Kiev. Era dezembro e, depois de comer uma pizza, ele e a mulher, Irina,
observam as luzes natalinas na Praça Sofia. Constatam que as danceterias Killer
Whale e Closer seguem lotadas em pleno inverno. Espantamse com a fila no
Mustafir, e planejam voltar lá algum dia para comer os famosos pasteizinhos
chineses do restaurante.
Artem participou das manifestações da Praça Maidan que, em 2014, derrubaram um governo fantoche de Moscou. No ano seguinte, alistou-se para lutar contra os russos. A experiência rendeu seu livro mais famoso, Zero Absoluto. Quando escreveu a crônica da Monocle, Artem temia ser convocado novamente. Pensava também em Irina, que trabalha com filmes. Ainda seria possível fazer cinema numa Ucrânia invadida?
Quando há um conflito, a vida de gente
comum é abruptamente atropelada pela geopolítica. “Em Belgrado, na guerra da
Sérvia, observei que as pessoas se preocupavam primeiro com a família e depois
em conseguir coisas básicas como comida, que começava a faltar nos
supermercados”, diz o jornalista Ricardo Alexandre, entrevistado no minipodcast
da semana. Ele acaba de lançar um livro sobre o Afeganistão e é um dos maiores
especialistas portugueses em conflitos internacionais.
A corrida aos supermercados já vem
acontecendo em Kiev, como mostra a cobertura exclusiva – em texto e vídeo – do
repórter Eduardo Gayer
para o Estadão.
O bom jornalismo sempre esteve atento para
o efeito das guerras sobre o cotidiano. Em 2003, Jon Lee Anderson, da The New
Yorker, conversou com representantes da classe média iraquiana às vésperas do
bombardeio americano. Um dos entrevistados era um violinista que não sabia se
sua orquestra continuaria existindo. Era iraquiano. Podia ser nova-iorquino.
Da mesma forma, o médico japonês descrito
no livro Hiroshima, do repórter John Hersey, podia ser americano. Ele estava na
varanda de seu hospital quando a bomba atômica o lançou a vários metros de
distância. Teve o azar de estar do lado errado no conflito em 1945.
Da guerra, o ucraniano Artem guardou a
frase de um colega do front: liberdade é poder se preocupar com coisas
triviais. A Rússia invadiu a Ucrânia, e talvez não seja mais possível a Irina e
Artem pensar em pasteizinhos chineses. Eles também sonhavam com um futuro
europeu para o filho de 11 anos. Grande parte dos ucranianos escolheu esse
futuro em eleições. A geopolítica, com seus tanques, pode fazer terra arrasada
do sonho.
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