O Globo
Nikolai Patrushev é o chefe do Conselho de
Segurança Nacional da Rússia e o principal ideólogo da “turma” de Vladimir
Putin, um grupo de ex-membros da KGB que comanda o governo. Sua visão básica: o
Ocidente pretende esmagar a Rússia, impondo-lhe “agressivamente os valores
neoliberais que contradizem nossa visão de mundo” (citado em The Economist,
edição de 19 a 25 de fevereiro).
Qual visão de mundo? Não é a volta do
comunismo, até por razões pessoais. É dinheiro. Esses ex-agentes da KGB, como o
próprio Putin, acumularam fortunas quando caiu o regime soviético e foram
introduzidas reformas capitalistas. Acumularam não pela capacidade como
investidores. Foi roubo.
Primeiro, nas privatizações das grandes
estatais. Aqueles funcionários tiveram acesso privilegiado a informações e a
“moedas de privatização”, como títulos da dívida pública, vendidos a preço de
banana e aceitos a preço de ouro na compra das estatais.
Depois, seguiram ganhando concessões
“informais” de negócios nas áreas de energia, infraestrutura e bancos,
principalmente.
Em resumo, um caso de capitalismo de amigos, levado ao limite.
Ao mesmo tempo, porém, foram introduzidas
reformas capitalistas, como amplo direito à propriedade privada de bens e
serviços, proteção do lucro e abertura de negócios para o exterior. Há uma
política econômica baseada em metas de inflação, controle das contas públicas e
taxa de câmbio mais ou menos flutuante. Com empresas privadas e seus
acionistas, a Bolsa de Valores de Moscou passou a ser um alvo de investidores
ocidentais.
Nesse quadro, surgiram magnatas não
oriundos do regime soviético, mas investidores e negociantes que souberam
aproveitar oportunidades na Rússia e, depois, em toda a Europa Ocidental. A
formação de uma classe média cosmopolita foi a consequência direta — classe que
se sente europeia.
Por que, então, o ideólogo de Putin tem
tamanha bronca dos “valores neoliberais”? Ele se refere a direitos e liberdades
individuais. Na visão de mundo de Putin e sua turma, a democracia à ocidental é
ineficiente, incapaz de gerir a economia e a sociedade.
Dito de maneira direta: oposição só cria
caso e atrapalha o governo; imprensa livre só serve para inventar fake news; as
minorias são um estorvo; liberdade partidária divide o povo.
Essa é também a visão de mundo da China.
Quando as democracias ocidentais enfrentavam dificuldades para lidar com crises
financeiras e com a pandemia, o presidente Xi Jinping decretou o fim desse
“modelo” e o sucesso do modo chinês de administrar um capitalismo de Estado.
De certo modo, Putin cometeu um erro ao
acreditar demasiado nessa versão. Para ele, as democracias ocidentais — com
suas liberdades dentro e fora dos países — jamais conseguiriam se unir para
enfrentar seu expansionismo.
Foi o contrário, pelo que se vê até agora.
Entre as principais democracias, é praticamente unânime a condenação da Rússia
e o acordo para impor pesadas sanções econômicas a governo, empresas e
indivíduos.
Sim, o Ocidente também pagará um preço pelo
bloqueio aos negócios russos, mergulhados principalmente na economia europeia.
Mas a ideia é provocar uma reação das elites empresariais russas e da classe
média.
Até agora, as elites, em privado,
manifestavam desagrado com o regime. Mas, como estavam ganhando dinheiro e em
expansão, bom, deixa pra lá. Declaravam-se neutras e não se metiam em política.
Mas, se a economia russa for levada a uma
forte recessão e perda de riqueza, muita gente por lá vai cogitar: tudo isso
para anexar a Ucrânia? Tudo isso para alimentar as ambições sanguinárias de
Putin?
Não existe a possibilidade de uma invasão à
Rússia para derrubar o governo Putin. Seria iniciar uma guerra mundial nuclear.
Mas é real a possibilidade de os próprios russos perceberem os danos causados
pela turma de Putin.
Também é real a possibilidade de Putin
endurecer ainda mais o regime ao se sentir pressionado internamente. Esse é um
problema que os russos terão de resolver.
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