sábado, 26 de fevereiro de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Guerra traz incerteza à economia global

O Globo

Enquanto se assiste aos bombardeios e ao desespero de civis na Ucrânia, invadida pela Rússia nesta semana sem ter cometido nenhuma provocação, os analistas tentam avaliar as consequências do conflito na economia global. É tarefa árdua, praticamente impossível, porque depende da resposta a uma pergunta: quais são os planos de Vladimir Putin? Além dele, aparentemente ninguém sabe.

Se Putin decidir mudar o governo ucraniano e, em seguida, mandar suas tropas retroceder às bases, o efeito econômico será menor. Caso decida aumentar o escopo da guerra para redesenhar o mapa geopolítico da Europa, o estrago será imenso, no mínimo uma nova recessão global. É um cenário menos provável, mas longe de impossível. Diante da incerteza, as principais Bolsas de Valores sofreram queda acentuada nesta semana. Foram surpreendidas pela invasão, mas ainda não estão numa situação que denote a proximidade de uma crise financeira.

O certo é que a economia mundial cresceria mais neste ano sem a guerra na Ucrânia. Por não saber o que esperar, consumidores e empresários, principalmente nas regiões mais próximas, perdem esperança no futuro e tendem a adiar planos de consumo e investimento. Quanto mais tempo a guerra levar para acabar, maior será a corrosão da confiança.

A Europa depende do gás russo para gerar energia, sobretudo a Alemanha e a Itália. O inverno europeu, agora próximo do fim, foi ameno. O estoque de gás na região está em nível superior ao previsto pelos analistas. Por isso a questão do abastecimento perdeu urgência, pelo menos no curto prazo. Mas não se tornou irrelevante. Um conflito prolongado a tornaria prioritária. Por ora, o mais imediato é o temor de descontrole maior da inflação já em alta, como resultado da escassez dos produtos exportados pela Rússia — como gás, petróleo e grãos.

No Brasil, o trabalho do Banco Central para controlar a alta de preços provocada pela pandemia se tornou mais complicado. A prévia da inflação de fevereiro ficou acima do esperado — 0,99%, o maior nível para o mês desde 2016. Agora com a agressão de Putin à Ucrânia, a tarefa de trazer o índice para a meta neste ano e em 2023 exigirá ainda mais rigor do BC. Uma das possíveis consequências é a manutenção dos juros em patamar elevado por mais tempo. Outro ponto de preocupação na área financeira é a eventual debandada dos investidores de países emergentes, em busca de ativos menos arriscados. Inflação e fuga de capitais são dois dos possíveis canais de contágio dos efeitos da guerra na economia brasileira.

No agronegócio, o que tira o sono é a possibilidade de o conflito atrapalhar a chegada de fertilizantes. A Rússia lidera as exportações globais de fertilizantes nitrogenados, é o segundo fornecedor de nutrientes derivados do potássio e o terceiro nos fosfatados. Pouco mais de 20% dos produtos usados nas lavouras brasileiras vêm de empresas russas. Na eventualidade de as entregas serem interrompidas, uma saída é o Brasil aumentar os carregamentos dos demais mercados de onde importa. Se isso será necessário, ninguém sabe. A marca do atual momento, quando a guerra não completou ainda nem uma semana, é a incerteza.

Senado precisa tratar legalização dos jogos com racionalidade

O Globo

Em que pese o oportunismo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao privilegiar uma agenda pessoal, foi positiva a aprovação, por 246 votos a 202, do projeto de lei que legaliza os jogos de azar, proibidos desde 30 de abril de 1946. Apesar de todas as pressões da bancada evangélica e do próprio presidente Jair Bolsonaro, que prometeu vetar a proposta, os parlamentares tiveram o mérito de tratar a questão de forma racional, sem o viés moralista e religioso que costuma impregnar as discussões sobre o assunto.

O projeto estabelece o Marco Regulatório dos Jogos no Brasil e propõe legalizar cassinos voltados para a atividade turística, jogo do bicho, bingos, videobingos, apostas on-line e em corridas de cavalos. Pela legislação atual, os jogos de azar são enquadrados como contravenção penal.

É preciso reconhecer que, em sete décadas de proibição, os jogos de azar nunca estiveram na prática proibidos. Só no papel. Apontadores do jogo de bicho recebem apostas às claras nas ruas do Rio de Janeiro, às vezes nas imediações de quartéis da Polícia Militar e de delegacias. Apostas on-line em sites hospedados noutros países são corriqueiras. Máquinas caça-níqueis nunca deixaram de funcionar, enchendo os bolsos de gângsteres, como comprovam inúmeras apreensões feitas pela polícia. Todo mundo sabe que o jogo existe, mas finge-se que a lei é cumprida, e fica tudo por isso mesmo.

Importante dizer que o Estado não arrecada 1 centavo. Estima-se que os jogos ilegais no Brasil movimentem mais de R$ 27 bilhões por ano, superando em 60% o montante dos legalizados (R$ 17,1 bilhões). Dados apresentados em audiências públicas na Câmara durante a discussão do projeto mostram que o país poderá arrecadar R$ 22 bilhões por ano em tributos e mais R$ 7 bilhões em outorgas de cassinos. A legalização dos jogos, além de incentivar o turismo, ainda poderá gerar 200 mil novos empregos e formalizar outros 450 mil. Nos Estados Unidos, onde existem mais de mil cassinos — destino de muitos brasileiros —, a indústria gera 1,7 milhão de empregos.

O projeto aprovado na Câmara cria um imposto, o Cide-jogo, que recolherá 17% da receita bruta dos empresários. A ideia é que os recursos arrecadados sejam usados nas áreas de turismo, meio ambiente, cultura, segurança pública e desastres naturais.

É preferível legalizar os jogos e submetê-los ao controle do Estado a fingir que eles não existem. O Ministério da Economia tem instrumentos e competência para regulamentar o setor e mantê-lo sob vigilância. O projeto prevê a criação de uma agência reguladora, ligada a esse ministério, que teria entre suas missões coibir a lavagem de dinheiro, uma das preocupações sensatas dos que são contra a legalização.

Espera-se que o debate no Senado, para onde seguirá o projeto, ocorra em bases racionais, sem ceder aos lobbies da bancada religiosa. Os senadores precisam levar em conta que os jogos já estão aí de forma clandestina. Muitos ganham com isso. Só quem perde é o Estado.

Sem negociação

Folha de S. Paulo

Policiais de MG extrapolam os limites legais com atos e ameaças por reajuste

Com uma atitude em que se misturam desfaçatez e perfídia, forças de segurança de Minas Gerais iniciaram um movimento destinado a arrancar do governador Romeu Zema (Novo) um reajuste salarial prometido no início de mandato.

Não haveria nada anormal se estivessem sentados numa mesa de negociação. Policiais apresentariam suas demandas, enquanto o governador mostraria as limitações orçamentárias do estado, pediria desculpas pela oferta inconsequente feita anos atrás e tentaria chegar a bom termo.

Os agentes, contudo, tomaram as ruas na segunda-feira (21), numa manifestação que reuniu policiais militares da ativa, policiais civis e agentes penitenciários.

Como se fosse pouco, distribuíram ameaças de novos protestos, decidiram reduzir o volume de serviço prestado à população pagadora de impostos e, o que é pior, deliberaram sobre o que chamaram de paralisação ou greve.

Há muitos problemas nessa sequência desabrida, a começar pela escolha das palavras. Falar em "paralisação" ou "greve" não passa de um escárnio, pois o nome correto dessa atitude criminosa é motim.

A Constituição proíbe a greve de membros das Forças Armadas e de policiais militares. Desde 2017, o Supremo Tribunal Federal estendeu o veto a policiais civis e federais.

A restrição existe por razões óbvias. Agentes de segurança desempenham atividade essencial à população, o que já seria motivo suficiente. Mas o principal é que são profissionais armados, cuja mobilização não só representa um risco inegável para a sociedade como se confunde com um gesto de ameaça.

Coube ao coronel Rodrigo Sousa Rodrigues, comandante-geral da Polícia Militar de Minas, acrescentar pinceladas surrealistas a esse quadro. Atuando como líder sindical, não como chefe de uma organização pautada pela hierarquia, deu sinal verde para seus subordinados agirem contra as leis.

Embora greves oportunistas de policiais não sejam novidade, é evidente que o contexto do bolsonarismo insufla o espírito corporativista das categorias armadas. O presidente Jair Bolsonaro (PL) é o primeiro a apostar na cooptação de policiais civis e militares com a distribuição de benesses concretas e promessas vazias.

A prática, condenável pelo que tem de obscuro e espúrio, ainda contamina as forças nos estados. Como se vê em Minas, até profissionais de alta patente encampam o discurso da ilegalidade.

É inegável que a estrutura das forças de segurança deixa a desejar, assim como a de boa parte do serviço público brasileiro. Mas não há negociação possível quando uma das partes rasga a Constituição que deveria proteger.

O futuro da Petrobras

Folha de S. Paulo

Estatal põe ênfase em rentabilidade em detrimento de plano de descarbonização

O inédito lucro anual de R$ 106,6 bilhões em 2021 e a promessa de distribuir R$ 37,3 bilhões em dividendos põem a Petrobras em posição brilhante. À vista curta, parece uma das empresas petrolíferas mais atraentes do mundo.

A rentabilidade da companhia se destaca no setor, com 34,6% de margem líquida, segundo dados da base Economática nos 12 meses até 30 de setembro. Gigantes como ExxonMobil (-2,5%), Chevron (7,1%) e BP (4,6%) ficam bem atrás.

No entanto o valor de mercado da Petrobras equivale a meras 2,3 vezes sua geração de caixa (Ebitda). Uma indicação de que a confiança na robustez da petroleira é limitada, na comparação com essas congêneres: ExxonMobil (9,6 vezes), Chevron (7,8) e BP (7).

Existem várias razões para explicar a valoração contida, que incluem os caprichos de um governo disfuncional e populista como o de Jair Bolsonaro (PL) —sempre pronto a ameaçar o interesse de investidores minoritários intervindo na alta direção da companhia e atacando sua política de preços.

No Brasil se dá pouca atenção, contudo, ao risco estratégico implícito na atitude da Petrobras diante das mudanças climáticas e das políticas de governança que o mundo vem desenhando para enfrentá-las. Todos agem como se o Acordo de Paris (2015) e a COP26 (2021) não tivessem sido mais que simpósios acadêmicos.

Com maior ou menor grau de consequência, outras petroleiras propõem transformar-se em empresas de energia limpa. Posicionam-se para o provável encarecimento do crédito e a tendência de desinvestimento impostos a combustíveis fósseis pela meta de cortar pela metade emissões de carbono até 2030 e zerá-las em 2050.

Na contracorrente, a Petrobras manteve decisão, em seu plano estratégico de cinco anos, de não investir na geração de energia renovável, como usinas eólicas e fotovoltaicas. O tema permanece mais restrito à sua área de pesquisas, enquanto o foco da produção prossegue no alto rendimento do pré-sal.

A estatal aderiu ao compromisso de neutralizar emissões de carbono até 2050, mas se esquiva de apostar de modo criterioso e decidido em fontes alternativas, as quais renderiam menos que seus poços de profundidade.

Para alcançar a descarbonização, a empresa dependente de combustíveis fósseis terá de contar em poucas décadas com tecnologias ainda incertas e provavelmente custosas.

Guerra, sombra e água fresca

O Estado de S. Paulo

Como se o Brasil não fizesse parte do mundo, Bolsonaro passeia e faz campanha eleitoral em vez de preparar o País para os efeitos da guerra na Ucrânia

Enquanto dirigentes dos principais países se mobilizavam para evitar o agravamento da crise internacional provocada pela invasão da Ucrânia pela Rússia e minimizar seus múltiplos impactos sobre a economia mundial, despreocupadamente o presidente Jair Bolsonaro caminhava no meio de apoiadores em nítido clima de campanha eleitoral fora de época e participava de “motociata” no interior de São Paulo. Era como se o Brasil estivesse livre das consequências que com certeza terá de enfrentar. Pressões sobre os preços internos por conta do aumento da cotação do petróleo, dificuldades de suprimento de bens essenciais, como fertilizantes e trigo, e queda da demanda de importantes itens da pauta de exportações do País são alguns dos efeitos previsíveis, embora seu impacto ainda seja difícil de aferir. A atividade econômica interna, já baixa demais, pode diminuir.

Agindo de modo irresponsável na questão russo-ucraniana, inclusive com um encontro em Moscou com o autocrata russo, Vladimir Putin, e uma declaração antecipada de “solidariedade” ao país poucos dias antes da invasão da Ucrânia, Bolsonaro apenas se mostra, mais uma vez, como efetivamente é. Desde sua posse, exibe incrível inaptidão para o cargo, desconhecimento de seu papel nos planos interno e internacional e desprezo por tudo que não lhe renda supostos ganhos eleitorais.

Mas não quer perder a pose. Quando soube que o vice-presidente da República, general da reserva Hamilton Mourão, cobrara um posicionamento mais firme do Brasil em defesa da soberania das nações, o que significa uma crítica clara ao governo russo, Bolsonaro reagiu à sua moda. Em sua live semanal das quintas-feiras, afirmou que “quem fala sobre o assunto (relações exteriores) é o presidente da República, e chama-se Jair Bolsonaro”. Nem precisava dizer: a desastrosa política externa brasileira tem a assinatura inconfundível de Jair Bolsonaro.

Sempre que resolve exercer a autoridade que julga não ser reconhecida, o País padece. Que o digam os que sofreram ou sofrem com a pandemia de covid-19 e com a crise econômica e social que trava o crescimento, retarda a recuperação do mercado de trabalho, comprime a renda de quem consegue manter uma ocupação e empurra milhões de cidadãos para abaixo da linha de pobreza.

A respeito da agressão russa contra a Ucrânia, que lançou o mundo em grave incerteza, Bolsonaro, malgrado reivindicar o poder que a Constituição já lhe garante, não teve nada relevante a dizer. Pior: tampouco anunciou qualquer iniciativa para demonstrar que seu governo está mobilizado para elaborar medidas coordenadas no sentido de minimizar o impacto da crise no Brasil, que tende a ser considerável.

Com a iminência da chegada ao Brasil das consequências mais diretas da invasão da Ucrânia sobre a atividade econômica, Bolsonaro provavelmente já está empenhado em arranjar mais desculpas – sua especialidade – para fugir da responsabilidade que, esta sim, é própria de seu cargo.

Especialista em criar ilusionismos, Bolsonaro talvez diga ao eleitorado que o País vinha bem, mas a guerra na Europa, ora vejam, impediu que a recuperação se acelerasse. Se fizer isso, mentirá duas vezes: uma, porque o País já vinha mal, mesmo antes da pandemia de covid-19, e a guerra, assim como o vírus, nada tem a ver com a incompetência do governo; outra, porque, se a questão ucraniana afetar a economia brasileira, como se presume, apenas acentuará os erros que se acumularam nos últimos três anos.

O País já se acostumou, e até faz piada disso, com as seguidas promessas de “recuperação em V” anunciadas pelo desacreditado ministro da Economia, Paulo Guedes, mesmo diante de indicadores que demonstram crescimento medíocre, inflação e persistente desemprego. O problema é que a piada está ficando muito sem graça – e o isolamento progressivo do Brasil no cenário internacional, intensificado por ações, inações e declarações obtusas de Bolsonaro sobre a crise europeia, somado à dedicação exclusiva do presidente à reeleição, tende a piorar uma situação que já seria ruim mesmo se o Brasil tivesse um governo decente.

Um drible inaceitável na ANS

O Estado de S. Paulo

Criada para resolver disputa por vagas em agências, lista de substitutos é completamente desvirtuada quando interinos ocupam cargos por anos

A criação das agências reguladoras foi uma conquista republicana, mas sua independência não é natural e precisa ser defendida dia a dia pela sociedade. Estabelecidas por lei como órgãos de Estado, e não apêndices do governo de plantão, às agências foi garantida autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira, bem como ausência de tutela ou de subordinação hierárquica. Um dos pilares que sustentam a soberania das decisões das diretorias colegiadas é o fato de que seus dirigentes detêm estabilidade e mandato fixo: após aprovação em sabatina no Senado, não podem ser demitidos nem pelo presidente da República. Por isso é inaceitável o drible que tem ocorrido na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

O arranjo, revelado pelo Estadão, consiste num rodízio ininterrupto de servidores alçados a diretores substitutos, de forma que o que era para ser algo temporário – a ocupação de funções por superintendentes até a nomeação dos definitivos – assumiu caráter permanente no órgão regulador. Dos cinco cargos de diretoria na ANS, apenas o presidente, Paulo Rebello, passou pelo crivo no Senado. Os demais são todos funcionários públicos que estão no ofício “interinamente” há dois anos consecutivos – César Brenha Rocha Serra, Bruno Martins Rodrigues e Maurício Nunes da Silva.

Não se trata de questionar a competência dos servidores, mas a lei determina um limite de 180 dias para que um funcionário público permaneça como diretor substituto. O que ocorre na ANS é uma deturpação que já ganhou até apelido: “escravos de Jó”, uma referência à conhecida brincadeira de criança. A manobra consiste em, a cada 180 dias, alterar os nomes dos ex-diretores que esses servidores estão substituindo, como se estivessem sempre numa nova suplência.

Tudo isso ocorre com aval da Advocacia-geral da União (AGU), que emitiu parecer que respalda essa ciranda. “Embora a situação não tenha sido prevista expressamente pelo legislador, é preciso buscar uma interpretação que assegure a maior efetividade à continuidade do serviço público e à capacidade decisória da agência, desde que a interpretação se mantenha dentro dos limites do texto legal”, disse a AGU. Em nota, a ANS afirmou que “segue estritamente o que determina a legislação no processo de nomeação e substituição da diretoria”.

Embora o Senado tenha aprovado o nome de duas pessoas para assumir o mandato da diretoria da ANS em dezembro, o presidente Jair Bolsonaro ainda não os nomeou – um deles é justamente um dos substitutos, Maurício Nunes da Silva, e o governo não explicou por que razão ele não foi confirmado no cargo até agora. Outras duas indicações aguardam escrutínio dos senadores há três meses. A desculpa oficial para a demora, nesse caso, é o avanço da covid-19 – as sabatinas são obrigatoriamente presenciais e têm sido continuamente adiadas.

É impressionante a criatividade do setor público para desvirtuar o cumprimento da legislação. A lista de substituição, que não existia até junho de 2019, nasceu para resolver um problema recorrente no governo da presidente Dilma Rousseff: vagas que ficavam abertas por anos em razão de disputa política, não raro impedindo que as agências tivessem quórum mínimo para deliberações. Com a lista de substitutos, isso não acontece mais.

O que a ANS não explicitou é que os integrantes dessa lista, como estabelece a lei, são designados pelo presidente da República “entre os indicados pelo Conselho Diretor ou pela Diretoria Colegiada”. Ou seja, desde o ano passado, cabe apenas e unicamente a Paulo Rebello escolher os substitutos que tomarão, ao lado dele, decisões sobre um setor tão relevante como o de planos de saúde. É precisamente por isso que há o limite de 180 dias para ocupar essas funções. Do contrário, parece – e é – concentração de poder na mão de uma só pessoa. Foi para evitar essa distorção que o Executivo propôs, e o Legislativo aprovou, há 22 anos, dar ao Senado a prerrogativa de aprovar ou reprovar os diretores. É em nome da lei que esse princípio deve ser respeitado.

Jogatina com incentivo fiscal

O Estado de S. Paulo

Com aval dos deputados para retirada dos jogos da clandestinidade, País está nas mãos do Senado para evitar o pior

Em mais um sinal da crise moral que o País atravessa, a Câmara deu aval à atuação legal de cassinos, bingos, apostas online e jogo do bicho. Desrespeitando todas as vozes contrárias à jogatina, como se a atividade fosse mera diversão condenada apenas por falsos moralistas, os deputados aprovaram, em apenas dois dias, um projeto condenado não só por religiosos, mas por todos os órgãos de controle e fiscalização e por especialistas em saúde pública e assistência social. É mais uma façanha da gestão de Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Câmara.

Ao insulto somou-se a injúria: não bastasse ter ignorado os sólidos argumentos dos que se opõem à liberação da jogatina, a maioria dos parlamentares não viu problemas em aprovar um projeto que impõe uma singela alíquota de 17% sobre a operação de apostas, por meio da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) – mesmo tratamento dado a empresas de entretenimento, como justificou o relator, deputado Felipe Carreras (PSB-PE).

Desse modo, uma atividade historicamente associada a tráfico de drogas, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e financiamento do crime organizado, e que ademais arruína a vida financeira, social e familiar dos jogadores compulsivos, terá uma tributação mais favorável do que aquela incidente sobre itens essenciais, como energia elétrica, combustíveis, medicamentos e até alimentação, conforme informações do Impostômetro da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). É como se houvesse um incentivo fiscal à degradação da sociedade.

Pelo texto, os jogos de azar serão supervisionados por um “órgão regulador e supervisor geral”. A essa agência nacional da jogatina caberá garantir que as operadoras trabalhem com recursos de “origem lícita” e identificada, além de exigir dos controladores das empresas “reputação ilibada”. A agência ainda estabelecerá limites: selecionará, por meio de licitação, cassinos e casas de bingo e elaborará um cadastro nacional dos viciados para impedi-los de entrar nos estabelecimentos. Todos os processos judiciais sobre aqueles que exploram a atividade ilegal serão extintos, e os acusados, anistiados. Seria cômico se não fosse trágico, mas a Câmara dos Deputados realmente se superou.

Nem a mobilização da bancada evangélica, apoiadora de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro, conteve o deletério ímpeto dos parlamentares. Agora, restará ao País contar com o juízo dos senadores para evitar que o Brasil se torne um paraíso fiscal da jogatina, na feliz expressão do vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos – que lembrou que os países que legalizaram os jogos impõem uma tributação de até 50%.

De Bolsonaro, por sua vez, não se deve esperar nada: o sempre eloquente presidente mal falou sobre o assunto. A apoiadores, lavou as mãos, pregou a autonomia do Legislativo e sinalizou que vetará a proposta caso seja aprovada pelos senadores, mas, roteiro pronto e manjado, não fará o menor esforço para manter o veto.

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