Folha de S. Paulo
Apropriação da linguagem de direitos
humanos e de liberalismo democrático se torna cada dia mais comum
A apropriação da linguagem dos direitos
humanos e do liberalismo democrático por setores reacionários e
autoritários, com o objetivo de defender posturas antiliberais e justificar
comportamentos contrários aos direitos humanos, tem se tornado cada dia mais
comum, não apenas no Brasil.
A imagem de Bolsonaro, com sua gravata
adornada de fuzis, bradando a defesa da liberdade contra ministros do TSE –que
têm se desdobrado na defesa da integridade do pleito eleitoral–, embora
farsesca, é emblemática dessa estratégia de invocar os direitos e valores
liberais com a finalidade de subvertê-los.
A defesa das armas, das milícias, da
devastação ambiental, da primazia da religião, do discurso de ódio, assim como
a insurgência
contra a vacina, o distanciamento social ou a máscara, vêm sendo
sistematicamente conjugadas a partir de uma distorcida gramática de direitos.
São tempos estranhos, depois de uma vida abjurando e hostilizando os direitos humanos, grupos radicais passaram a invocá-los na defesa de suas pautas autoritárias, discriminatórias e excludentes, colocando em risco não apenas um amplo rol de direitos dos demais membros da comunidade, como as próprias instituições de defesa desses direitos.
A lógica política por trás desse movimento
de apropriação é conhecida. Valores como liberdade, justiça, democracia e
direitos têm forte conotação moral. Daí serem disputados e reivindicados mesmo
por aqueles que negam a sua essência, como uma espécie de manto legitimador.
Quem se esquecerá da tortura
e das mortes levadas a cabo no Estádio Nacional do Chile, de Pinochet, em
nome no "liberalismo"; ou do fuzilamento daqueles que ousavam cruzar
o Muro de Berlim, pelo Exército da autodenominada República Democrática da
Alemanha?
Da perspectiva jurídica esses movimentos
iliberais e reacionários têm assumido duas estratégias na maliciosa distorção
da gramática dos direitos. A primeira é a seletividade. Tentam destacar, da
ampla carta de direitos humanos concebida por meio de um longo processo de
consenso internacional, apenas um pequeno grupo de direitos, que denominam
"essenciais" ou "naturais", voltados a assegurar suas
aspirações egocêntricas, supremacistas e liberticidas, que não reconhecem no
outro um sujeito pleno de direitos.
A segunda estratégia desses liberticidas é
adotar uma noção tosca do que seja um direito subjetivo. Tomam esses direitos
como reivindicações absolutas. Assim, reivindicam que o direito à vida
significa que ninguém poder se opor ao direito de comprar armas, organizar
milícias e se beneficiar de amplas excludentes de ilicitude; o direito à
liberdade pessoal facultaria a cada um se insurgir contra a vacinação ou uso de
máscaras; o direito à propriedade impediria que o Estado estabelecesse
limitações de natureza ambiental ou mesmo pretensões tributárias,
redistributivas.
Creio que essa onda de apropriação
distorcida da gramática dos direitos ganhou densidade no Brasil por ocasião do
referendo das armas de 2006, quando a direita brasileira, influenciada pelos
extremistas norte-americanos, percebeu as vantagens de empregar uma matriz
deturpada de direitos para concretizar seus objetivos. Minha colega Marta
Machado alerta para o mesmo tipo de apropriação ocorrida no campo dos direitos
reprodutivos.
É compreensível que muitos setores
ressentidos com as mudanças trazidas pelo processo de universalização dos
direitos humanos tenham embarcado nessa farsa promovida por populistas,
reacionários e autoritários. Não se pode admitir, no entanto, que grupos mais
bem informados, sinceramente compromissados com os valores da democracia,
tenham se deixado enganar por essa trama perversa.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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