O Estado de S. Paulo
Memória da diarquia e da saga das Diretas Já é essencial para abrir uma fresta no nosso sombrio destino a partir de 2023
O governador João Doria ainda não percebeu
que, insistindo em se candidatar à Presidência da República, em vez de postular
a reeleição, entregará São Paulo de mão beijada ao PT. Lula deve estar rezando
o terço várias vezes por dia para que Doria faça exatamente isso, e sorrindo de
contentamento ao ver que Doria logo chegará ao ponto de não retorno.
Em política, 20 anos são uma eternidade. Em
2002, todos os ventos sopravam a favor de Lula. Hoje, sopram na direção
contrária. Lula provavelmente vencerá com um pé nas costas, mas o panorama que
descortinará a partir do Planalto é o de um país em escombros. No Congresso,
uma maioria amorfa e subserviente de nada lhe servirá; ao contrário, será uma
maioria disposta a tudo para arrancar nacos em seu minguante erário. As massas
que antigamente o idolatravam não irão às ruas com o mesmo entusiasmo.
Guardo na memória uma instigante palestra feita dez anos atrás na Fundação Fernando Henrique Cardoso pelo ex-presidente uruguaio Julio María Sanguinetti. Do alto de sua experiência e de seu conhecimento das realidades de nossa triste América Latina, ele observou que o populismo viceja quando a economia vai bem, mas emagrece e sai de cena quando ela vai mal. Todo líder populista precisa de recursos financeiros em abundância, pois é com dinheiro (público, obviamente) que ele compra políticos dispostos a controlar de dentro para fora o Parlamento, e líderes sindicais, estudantes e padres de esquerda, que o façam de fora para dentro.
Esperto, Lula sabe que o apoio de
banqueiros não sai barato e que não fará reformas relevantes. Mas, em sonhos,
já anteviu o triângulo que poderá ao menos livrá-lo de um fim de carreira
desastroso. Refiro-me, é claro, aos governos de São Paulo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais. O de São Paulo, principalmente, por sua dimensão populacional e
econômica.
Meu leitor e minha leitora certamente se
lembram do dia 25 de abril de 1984. Naquela data, a bancada de apoio ao governo
militar derrotou no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que se
tornou conhecida pelo nome de seu proponente, o deputado Dante de Oliveira
(MDB-MT). Que tem isso que ver com a sucessão presidencial de 2022? Mais do que
se imagina, como tentarei mostrar a seguir.
No início de 1984, com o objetivo de
mobilizar apoio popular para a emenda Dante de Oliveira, a oposição reunida no
MDB lançou a campanha das Diretas Já, que, se aprovada, tornaria direta a
sucessão do último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo,
retirando-a do Colégio Eleitoral, onde Paulo Maluf tentaria garantir em trajes
civis a continuidade do regime.
A principal rede de televisão do País ignorou
a campanha mesmo quando os comícios já ganhavam certo vulto. A 25 de abril, o
quadro era bem outro. Derrotada no Congresso, a oposição imediatamente
redirecionou a campanha, aceitando decidir a parada contra Maluf no Colégio
Eleitoral. O resto da história é bem conhecido, mas preciso voltar ao
triângulo.
O agigantamento da campanha popular seria
impensável se, nas eleições para governador realizadas dois anos antes, a
oposição não tivesse saído vitoriosa em São Paulo (com Franco Montoro), no Rio
de Janeiro (com Leonel Brizola) e em Minas Gerais (com o próprio Tancredo
Neves). Com essa tríplice vitória, a correlação de forças entre governo e
oposição tornou-se aproximadamente diárquica, tendo em vista a soma de poder
representada pelos três grandes Estados.
Penso, pois, que a memória da diarquia e da
consequente saga das Diretas Já é essencial para abrirmos uma fresta no sombrio
destino que – nem se engane – ainda nos fará companhia a partir de 2023. Não me
parece estritamente necessário, mas ressalto que não estou comparando Lula a
Jair Bolsonaro. A obrigação de escolher entre os dois é um escárnio embutido em
nossa tragédia. A esta altura, as necessidades urgentes de nosso país são mais
que conhecidas. A primeira é desfazer a polarização entre Lula e Bolsonaro, que
já deu o que tinha para dar, que era nada; ela já nasceu perempta. Segundo, por
mãos à obra para dar um jeito nas contas públicas e deflagrar a magna reforma
do Estado, desmontando o entulho patrimonialista e corporativista que o corrói
de alto a baixo. Retomar o crescimento, reorientando-o para que os miseráveis
tenham do que viver, sem o imperativo de recorrer à esmola pública. Isso, só os
muito obtusos não percebem, depende de um vigoroso aprimoramento em nosso
sistema de ensino. Travar a expansão da criminalidade organizada, que
obviamente tem crescido a uma taxa muito mais alta do que o PIB (a soma dos
bens e serviços produzidos em um ano).
A conclusão que se há de extrair dessas
relembranças só pode ser uma. O triângulo invertido dos sonhos de Lula não lhe
garantirá a propalada “governabilidade”. Esta ele não terá porque não a tem,
ponto. Garantirá, isto sim, um preocupante desequilíbrio de poder entre o
lulopetismo e os que de fato querem ver o Brasil sair do atoleiro.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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