Folha de S. Paulo
Quem diz que é impossível ser cristão de
esquerda é porque virou político de direita
Em janeiro deste ano, o jornal da Igreja
Universal do Reino de Deus publicou um artigo
defendendo que um cristão não pode ser de esquerda. Eu sou católico e de
esquerda. Não sei se Roma ou a Internacional Socialista protestariam muito se
eu fosse embora, mas continuo aqui.
Por isso, demonstro a seguir que o artigo
da Universal está errado.
O cristianismo não se adapta perfeitamente
a nenhum programa político e é parcialmente compatível com a maioria deles. A
questão de que partido político defende melhor os valores cristãos está sempre
em aberto, a resposta é quase sempre "depende do valor, depende da época",
e às vezes é "nenhum".
O artigo da Universal ataca a esquerda por apoiar ditaduras que perseguem cristãos, o que é correto. Mas não se pronuncia sobre o governo de Jair Bolsonaro, apoiado pela Universal, que é aliado da ditadura da Arábia Saudita. Bispo Macedo, conte pra gente, por que não há Igreja Universal em Riad?
O artigo da Universal também diz que a
esquerda se opõe à família tradicional. Isso é mentira. A esquerda deixa
a família
tradicional em paz e defende políticas que as ajudem a prosperar, o
que é tudo que a família tradicional quer da política.
A esquerda é, sim, contra a proibição do
casamento LGBT. Se os fiéis da Universal não quiserem ser LGBTs, é direito
deles. Agora, se quiserem usar a máquina do Estado, a lei, para proibir
os LGBTs
que querem se casar, parem de reclamar das ditaduras comunistas ou da
perseguição que o Império Romano impôs aos primeiros cristãos.
Mas o que chama mesmo atenção no artigo da
Universal são os assuntos que ele tem que evitar para poder dizer que não
existe cristão de esquerda.
Pelo que se lê no Evangelho, a prioridade
de Jesus Cristo eram os pobres, os perseguidos e os doentes. Nem pobres nem
perseguidos nem doentes aparecem no artigo da Universal. Não há uma palavra
sobre o que o cristianismo exige do cristão em termos de solidariedade
com os menos favorecidos.
E esse é justamente o aspecto da esquerda
que interessa ao cristianismo. As políticas públicas pró-pobres, e as lutas
sociais que a produziram, são a conversão de César que interessa: colocar o
Estado a favor dos injustiçados, dos pobres e dos doentes. Se isso for
complementado pela
ética de empreendedorismo e autoajuda que as igrejas evangélicas tão
bem incutem em seus fiéis, maravilha.
A esquerda acha ótimo que igrejas cristãs
ensinem os jovens a viver em comunidade e a sacrificarem parte de seu lazer
para estudar e subir na vida. A esquerda também trabalha para que haja Prouni
e cotas
raciais para dar uma força pra garotada negra e pobre. Não há conflito
nenhum entre essas duas coisas.
De modo que a Universal que me desculpe,
mas é perfeitamente possível ser cristão e ser de esquerda. Eu posso não ser
muito bom em nenhuma das duas coisas, mas tem quem seja.
Quem diz que é impossível ser de esquerda e
cristão é porque já virou só um político de direita que demonstra pouca
preocupação com sua fé, e nenhuma com a tarefa de fazer com que seus fiéis
pobres tenham chance de vencer na vida.
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