O Globo
Cerca de três armas de fogo de caçadores,
atiradores e colecionadores (CACs) se perdem por dia no Brasil. Entre elas
estão fuzis, que podem disparar até 600 balas por minuto e têm um alcance de
800 metros. São centenas de armas que vão para a rua sem controle e que têm o
poder de destruir famílias.
Esse risco pode ficar ainda maior. Está na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado o Projeto de Lei 3.723/2019,
o PL da Bala Solta. O projeto, se aprovado, ampliará a quantidade de armas
permitidas para CACs, facilitará o porte para milhares de pessoas e acabará com
as marcações nos projéteis disparados por pistolas, fuzis e outros armamentos.
Atualmente, essas marcações são essenciais para fiscalizar o desvio de munições
e elucidar homicídios.
Tomemos os exemplos dos assassinatos de Patrícia Acioli, em 2011, Marielle Franco e Anderson Gomes, em 2018. Nesses crimes, o rastreamento da munição foi essencial. No caso Marielle, cuja investigação, vergonhosamente, ainda não foi concluída, policiais descobriram que as balas inicialmente pertenciam a um lote da Polícia Federal e foram parar nas mãos de assassinos de aluguel. Os mandantes ainda não foram identificados, mas os responsáveis pelos tiros, sim. As balas que mataram Patrícia levaram a investigação até um batalhão de Polícia Militar para onde aquele lote de munição havia sido distribuído legalmente. Assim, descobriu-se que o mentor do crime era um comandante da PM, que foi condenado e preso.
Esse tipo de investigação ficará mais
difícil, já que o Projeto de Lei, se aprovado, eliminará a marcação de
munições, dificultando o rastreamento. Atualmente, cada caixa de munição tem um
código de barras que identifica quem são o fabricante e o comprador. O PL quer
acabar com isso.
Num país em que apenas 44% dos homicídios
são esclarecidos, por que acabar com um recurso tão útil em investigações? Se
até os crimes de repercussão internacional —como o caso Marielle, sem conclusão
há quatro anos — continuam travados, que esperança há para tantos outros
inquéritos que dormem nas gavetas das delegacias?
Além de ficar mais difícil investigar,
corremos o risco de ver nas ruas muito mais armas que até há pouco tempo eram
de uso restrito das forças de segurança. O Brasil já tem mais de 450 mil CACs.
Há mais cidadãos potencialmente armados que policiais militares na ativa.
Hoje, cada CAC pode ter até dez armas. O PL
da Bala Solta amplia esse número para 16. Os CACs também estarão autorizados a
transportar armas carregadas, em qualquer horário e trajeto. Antes, era
permitido transportar armas carregadas apenas no trajeto entre a casa e o local
de prática de tiro.
Ampliar a oferta de armas e afrouxar a
fiscalização não traz benefícios para uma sociedade em que mais de 40 mil
pessoas são mortas a tiros todo ano. A pergunta que fica é: no Brasil de 2022,
a quem interessa dificultar o rastreamento de munições, dificultar investigação
de homicídios e facilitar o acesso a armas antes restritas?
*Diretora de programas do Instituto Fogo Cruzado, é doutora e mestre em sociologia pelo Iesp/Uerj
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