Valor Econômico
Bolsonaro investe contra o domínio da
esquerda na região
O cantor Luiz Gonzaga foi uma figura
politicamente controversa. Um dos artistas mais populares do país ao longo de
seis décadas de carreira, ele emprestou seu prestígio para impulsionar a
popularidade de políticos como Getúlio Vargas, JK e Jânio Quadros (para quem
gravou um jingle de campanha, cujo slogan era “Depois de JK só serve JQ”).
Em declínio depois da explosão da bossa
nova, Gonzagão foi subserviente aos governos militares. No início dos anos
1980, porém, após a reconciliação com o filho Gonzaguinha, realizaram shows
Brasil afora pelo fim da ditadura e a anistia política. Aliás, pouca gente se
lembra, mas o atentado do Riocentro, ataque terrorista executado por setores do
Exército (que teve como um dos acusados pelo seu planejamento o general Newton
Cruz, falecido na última sexta-feira), aconteceu numa apresentação de dezenas
de artistas da MPB em homenagem justamente a Gonzagão.
Apesar da falta de coerência política, o Rei do Baião se manteve fiel ao longo de sua carreira ao povo do Nordeste, cantando também em forrós, xotes e xaxados a riqueza cultural e denunciando as agruras da vida na região.
Vozes da Seca, canção gravada em 1953 numa
parceria com Zé Dantas, é uma crítica às medidas assistencialistas adotadas
pelos governos brasileiros para amenizar as consequências das crises
humanitárias cíclicas vividas pela população nordestina: “Seu doutor, os
nordestinos têm muita gratidão pelo auxílio dos sulistas nesta seca do sertão;
mas, doutor, uma esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia
o cidadão”.
Para Gonzagão, os problemas do Nordeste
precisavam ser atacados por medidas estruturais: “Dê serviço a nosso povo,
encha os rios e barragens, dê comida a preço bom, não esqueça a açudagem;
livre, assim, nós da esmola, que no fim desta estiagem, lhe pagamos até os
juros, sem gastar nossa coragem”.
Quando Lula lançou o Bolsa Família, o
programa de transferência de renda foi duramente criticado pela oposição a seu
governo. O então deputado federal Jair Bolsonaro, em inúmeras ocasiões, se
referiu ao benefício social em tom pejorativo (como “esmola” ou
“bolsa-farelo”), sempre destacando que seus fins seriam eminentemente
eleitoreiros, com menções preconceituosas ao eleitor nordestino.
O fato é que o Bolsa Família era apenas
parte de um conjunto de políticas públicas que impactaram diretamente a região,
como o Programa Luz para Todos, os incentivos à agricultura familiar (Pronaf),
a expansão do atendimento médico com os programas de Saúde da Família e Mais
Médicos, a abertura de poços e cisternas, a transposição das águas do Rio São
Francisco, entre outras iniciativas criadas ou ampliadas pelas administrações petistas
em âmbito federal ou estadual.
Entre 2000 e 2010, o Índice de
Desenvolvimento Humano entre os municípios nordestinos saltou de uma média de
0,512 para 0,660. Obviamente a base de comparação era muito baixa, mas o
crescimento de 29% observado durante uma década governada quase inteiramente
por Lula foi capaz de reduzir o atraso da região em relação à média brasileira
de 16,4% para 9,2%.
A gratidão da população nordestina a essas
transformações veio na forma de votos. Desde que Lula chegou ao Palácio do
Planalto, o PT fidelizou grande parte do eleitor da região. Uma medida da
dominância do partido na área: dos 1.777 municípios brasileiros que deram mais
de 50% dos votos ainda no primeiro turno aos candidatos petistas à Presidência
nas quatro eleições desde 2006 (Lula, Dilma duas vezes e Haddad), nada menos
que 1.319 (quase 75%) estão localizados no Nordeste.
Graças a uma vantagem de 12,2 milhões de
votos obtidos no Nordeste, Dilma conseguiu derrotar Aécio nas eleições mais
disputadas que tivemos em nossa história. E se não fosse a diferença de 7,1
milhões de votos na preferência dos nordestinos por Haddad, Bolsonaro teria
vencido o pleito de 2018 com facilidade ainda no primeiro turno.
O Nordeste se tornou o grande bastião da
esquerda brasileira. Antes das recentes desincompatibilizações, sete dos nove
governadores na região pertenciam à dobradinha PT-PSB que encabeça a chapa de
Lula à Presidência - e os dois restantes, Belivaldo Chagas (PSD-SE) e Renan
Calheiros Filho (MDB-AL), já declararam apoio ao petista nas eleições de
outubro.
As pesquisas eleitorais indicam Lula
imbatível na longa faixa do território nacional que vai de Mucuri, no extremo
sul da Bahia, a Cândido Mendes, na divisa do Maranhão com o Pará. No último
Datafolha Lula bate Bolsonaro de lavada na região: 55% a 20%.
Mas não se iludam que Bolsonaro está
conformado com uma derrota avassaladora no Nordeste. Valendo-se das
prerrogativas que o exercício do cargo lhe confere, o presidente trata de
irrigar a região com dinheiro público de monta. Desde novembro de 2021
Bolsonaro já direcionou R$ 18,3 bilhões aos Estados do Nordeste apenas a título
de pagamentos do Auxílio-Brasil - o que representa 47,7% do orçamento do
programa que sucedeu, ironia das ironias, o Bolsa Família.
Os municípios do Nordeste também têm sido
alvo preferencial do orçamento secreto do governo Bolsonaro. Rastreando com a
ajuda de André Shalders as notas de empenho emitidas por meio das famosas
emendas de relator (RP9) de 2020 a 2022, constatamos que a região foi agraciada
com o maior quinhão dos gastos no período: 39,7% do total, o que significa mais
de R$ 8,6 bilhões injetados na economia nordestina graças à ação combinada de
Arthur Lira, no Congresso, e Ciro Nogueira, na Casa Civil - dois dos principais
artífices da candidatura à reeleição de Bolsonaro.
A ação do governo em seu mais fiel reduto
eleitoral preocupa Lula e o PT. Na segunda-feira passada, foi num jantar com
lideranças do MDB do Nordeste que Lula buscou apoio para rebater a crítica de
que enfrenta dificuldades de formar alianças para além da esquerda nesta
corrida eleitoral.
Lula sabe que o Nordeste será o fiel da
balança para as suas pretensões de retornar ao Palácio do Planalto. Resta saber
como defender seu legado diante do volume crescente de recursos públicos despejado
na região por Bolsonaro na reta final da campanha.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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