segunda-feira, 18 de abril de 2022

Demétrio Magnoli: Otan é álibi na invasão à Ucrânia

O Globo

‘O Ocidente, e especialmente os EUA, é o principal responsável pela crise que começou em fevereiro de 2014’, escreveu John Mearsheimer na revista The Economist, em 19 de março, referindo-se à invasão da Ucrânia pela Rússia. Mearsheimer, um cientista político da escola realista, reproduz a lenda de que a guerra de agressão deve ser interpretada como operação defensiva russa diante da expansão da Otan. É o álibi central do Kremlin, reproduzido mundo afora por correntes da esquerda não reformada e da direita nacionalista.

O “fevereiro de 2014” é o momento da Euromaidan, o levante ucraniano que derrubou o governo cleptocrático pró-russo de Viktor Yanukovich. Foi seguido, imediatamente, pela operação militar russa de anexação da Crimeia e implantação de enclaves separatistas no Donbass. Mearsheimer classifica a revolução popular como “golpe”, quase responsabilizando o Ocidente pelo que fizeram milhões de ucranianos comuns. Aí, sem tirar nem pôr, faz eco ao discurso de Vladimir Putin.

O argumento básico do artigo concentra-se na declaração da cúpula de Bucareste da Otan, em 2008, que abriu a hipótese de adesão da Ucrânia. Dali em diante, particularmente após 2014, a percepção de insegurança da Rússia teria gerado uma crise crônica, que desaguou na invasão em curso. A descrição da Otan como ferramenta de políticas imperiais dos EUA, clichê das narrativas ideológicas da esquerda e da direita antiamericanas, é uma caricatura da História.

A Otan nasceu, em 1949, para “deixar a URSS fora, os EUA dentro e a Alemanha por baixo”, no diagnóstico célebre do britânico Hastings Ismay, primeiro secretário-geral da aliança militar ocidental. A URSS, que acabava de estabelecer sua hegemonia sobre a Europa Oriental, deveria ficar “fora” da Europa Ocidental — e, para isso, era preciso conservar os EUA “dentro”. A Alemanha Ocidental, que voltava a ter forças armadas, seria mantida “por baixo”, com seus soldados subordinados à Otan, para não recair na sedução do nacionalismo.

Aliança defensiva — eis a vocação da Otan. A Otan nunca invadiu país nenhum. Durante a Guerra Fria, jamais realizou operações de combate. Depois, na antiga Iugoslávia (1992-1999) e na Líbia (2011), operou sob o amparo de resoluções do Conselho de Segurança da ONU destinadas a evitar massacres de civis. No Afeganistão, só passou a operar em 2003, mais de um ano após a invasão americana, no quadro de uma força internacional composta de 42 países. Já o Pacto de Varsóvia, aliança militar comandada pela URSS, invadiu a Hungria (1956) e a Tchecoslováquia (1968), depondo governos comunistas que, em ruptura com Moscou, almejavam um “socialismo de face humana”.

A expansão da Otan não decorreu de um plano imperial maquiavélico dos EUA. Na hora da reunificação alemã, em 1990, o governo americano prometeu a Mikhail Gorbachev, último líder soviético, que a aliança ocidental não avançaria rumo ao leste. O compromisso informal seria quebrado depois de 1997, mas em novas circunstâncias, provocadas pelas guerras na antiga Iugoslávia —e devido à pressão das nações do antigo bloco soviético.

Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria e tantos outros almejavam a segurança militar oferecida pela Otan. As nações do leste temiam que a Rússia viesse a imitar a URSS. Certa ou errada, a “política de portas abertas” da aliança foi uma resposta a tal demanda, não um ato de projeção de poder imperial. Mesmo assim, na cúpula de Bucareste, Alemanha e França bloquearam o caminho à candidatura da Ucrânia.

Durante o longo inverno da Guerra Fria, a Europa Ocidental ergueu democracias sólidas, enquanto ditaduras de partido único subordinadas a Moscou congelavam a vida social na Europa Oriental. As democracias ocidentais prosperaram sob o duplo abrigo da Comunidade Europeia e da Aliança Atlântica. Nelas, os partidos social-democratas e comunistas disputavam eleições livres, e os sindicatos de trabalhadores conquistavam extensas redes de proteção social. O problema dos “anti-imperialistas” de esquerda e dos “antiglobalistas” de direita que repetem a alegação putinista não é a Otan, mas a democracia.

 

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