Folha de S. Paulo
Divergências programáticas não importam
quando a polarização tem base afetiva
A polarização volta a ocupar lugar de
destaque no debate público, mas este tem sido marcado por um claro equívoco. A
polarização não se define por divergências programáticas —por dissenso em torno
de políticas públicas —e sim por intensa animosidade em relação aos rivais na
arena política. Ela não é fundamentalmente programática, mas afetiva.
Há um outro problema no debate: a suposição
de que as preferências políticas estejam distribuídas ao longo de uma única
dimensão, na qual se pode identificar posições extremas ou de centro. Falar
de "falsa
simetria", por exemplo, é ignorar que polarização e preferências de
políticas públicas são questões distintas. As evidências são robustas de que a
polarização atual nos EUA e em outros países tem se acentuado sem que a
divergência no eleitorado sobre políticas públicas tenha se intensificado. Há
casos em que o
contrário ocorreu.
Na realidade, as preferências são multidimensionais, e isso tem se exacerbado. Como caracterizar o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, que é radicalmente pró-mercado e ecofriendly; abertamente gay e a favor da imigração (o que é consistente com sua ascendência indiana). Ou seu partido, Fine Gael, que faz parte do EPP, grupo conservador do Parlamento Europeu do qual fazem parte o Partido Popular espanhol, Os Republicanos na França e a Forza Italia, o partido de Berlusconi? Não se trata de exemplo isolado, pelo contrário.
Para além da economia, redistribuição, meio
ambiente, e moralidade privada/costumes, há ainda duas dimensões cruciais: a
republicana/moralidade pública e liberdades e direitos individuais que são
ortogonais às demais: dois candidatos podem ter posições iguais nas dimensões
anteriores mas divergir quanto a seus posicionamentos e práticas com respeito
ao abuso de poder e corrupção, ou a democracia e autoritarismo.
Na eleição presidencial realizada em março
na Coreia do Sul, o ex-procurador geral que denunciou a então chefe do
executivo por corrupção e abuso de poder, processo que culminou com seu
impeachment e prisão, foi eleito. O pleito foi marcado por intensa polarização
em torno da moralidade pública. Na eleição francesa, Le Pen abandonou questões
como imigração e União Europeia para se centrar em redistribuição e foi
bem-sucedida.
A competição política tipicamente assume a
forma de disputa em torno da saliência que algumas dimensões adquirem ("heresthetic" no
jargão), mais que conflito no interior de cada uma delas (o que vale também
para a formação de alianças). Importa menos o posicionamento em relação à
economia ou à corrupção, que a centralidade que o tema irá adquirir. Ou o
silêncio sobre ele.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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