Folha de S. Paulo
A qualidade do Estado de Direito no Brasil
vem caindo nos últimos três anos
O Brasil vive às turras com a lei desde sua
origem. A ideia de que pessoas e instituições devam se conduzir em conformidade
com regras gerais —aplicadas sem qualquer distinção— e de que todos são
sujeitos de iguais direitos, jamais conseguiu superar os enormes obstáculos
levantados por uma sociedade estruturada em torno da desigualdade, da discriminação,
dos privilégios e das exclusões. Daí a incompletude de nosso governo das leis.
A consequência mais imediata da fragilidade
da lei no Brasil é a submissão de enormes contingentes da população à violência e
ao arbítrio, que brutaliza a vida cotidiana dos mais pobres, mas também cria
mal-estar os mais afluentes. A consequência mais difusa dessa incompletude é
que o país não consegue consolidar uma trajetória de desenvolvimento. Onde não
há lei prevalece o oportunismo e a rapinagem, em detrimento da cooperação, do
planejamento, do investimento de longo prazo, da boa governança democrática.
A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos. O Brasil se encontra no bloco dos países que mais declinaram na América Latina, conforme aponta o último "Rule of Law Index". Essa deterioração não chega a surpreender, em face da hostilidade do presente governo —e das múltiplas forças autoritárias, milicianas e liberticidas que o apoiam— ao governo das leis.
A espessura desse declínio pode ser
percebida em múltiplas esferas. Particularmente grave é o crescimento do crime
organizado na região amazônica, associado não apenas ao controle das rotas de
tráfico, mas também ao garimpo
ilegal, ao desmatamento e
à grilagem.
As taxas de homicídios em cidades pequenas e médias na Amazônia superam
hoje a média nacional ("Cartografias das Violências na Região
Amazônica", produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). O
desmonte dos órgãos e mecanismo de controle e aplicação da lei, além de um
claro incentivo a práticas ilegais, tem colocado em risco nosso principal ativo
estratégico, sob o olhar cúmplice daqueles que sustentam o presente governo.
A deterioração também é clara no âmbito
da corrupção,
seja pela institucionalização do orçamento secreto, que azeita as relações do
parlamento com o Executivo, seja pela fragilização de instituições como a Controladoria Geral da
União e a Policia
Federal.
Não se deve negligenciar também o
fortalecimento do milicianismo e do tráfico em muitas regiões do país.
Estima-se que mais de 60% do território do Rio
de Janeiro estejam sob o controle dessas forças, o que tem contribuído
para um dramático declínio econômico do estado, além de perdas humanas
inestimáveis.
O Brasil não superará os seus inúmeros
desafios no campo do desenvolvimento econômico, do controle da corrupção
política, da preservação ambiental, da qualificação de seus jovens ou da pacificação
social e controle do crime sem enfrentar a questão da integridade do Estado de
Direito. A sua deterioração nos lança num caminho perigoso.
É surpreendente que muitas pessoas que
compõem setores do empresariado, das classes armadas, de grupos religiosos e
mesmo do estamento jurídico não se deem conta da estratégia deliberada de
erosão da lei e da ordem patrocinada por esse governo. À margem da lei só há o
crime.
*****
Homenageio com esse artigo o ilustre
jurista e brasileiro Dalmo
de Abreu Dallari, que jamais se acovardou face àqueles que afrontaram o
Estado de Direto.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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