Folha de S. Paulo
Eduardo Bolsonaro orgulha-se dos atos de
máxima covardia alheia celebrando a tortura
"Ainda com pena da cobra" – o
tuíte sarcástico de Eduardo Bolsonaro, referência à tortura da jornalista
Míriam Leitão, deixada nua num porão escuro com uma jiboia, não deve ser
condenado apenas, nem principalmente, na esfera ideológica. Trata-se, como
muitos destacaram, de uma questão de caráter. É um jato de luz sobre as
escalas da covardia.
A jornalista tinha 21 anos e estava grávida
quando, em 1972, experimentou o inferno num quartel de Vila Velha (ES). Muitas
décadas depois, aos 66, viu-se alvo, também por motivos políticos, de um
exercício distinto de covardia.
Foi em junho de 2017, ano seguinte ao
impeachment de Dilma Rousseff, outra vítima de torturas da ditadura militar, no
voo 6237 da Avianca, em que viajava uma chusma de delegados do Congresso
Nacional do PT.
Durante duas horas, os soldados do
"controle social da mídia" hostilizaram-na
sem cessar, gritando ofensas, entoando palavras de ordem, esbarrando em sua
poltrona. Os covardes aproveitavam-se da dupla circunstância de que a vítima
não podia sair da aeronave e, sozinha, teria seus argumentos abafados pelos
berros da matilha.
À primeira vista, os militantes adultos, muitos já grisalhos, imitavam arruaças de adolescentes. De fato, inspiravam-se no modelo do "ato de repúdio" utilizado incontáveis vezes por regimes comunistas e fascistas.
O episódio do voo 6237 figura na escala
inferior da covardia. Já o "ato de repúdio", na sua forma clássica,
figura num lugar intermediário. É um método de ação política no qual o regime
autoritário mobiliza informalmente bandos de militantes para intimidar e
ameaçar dissidentes em lugares públicos.
A diferença relevante com sua contrafação,
os "atos de repúdio" realizados em sistemas democráticos, é que a
polícia política espreita atrás da malta amestrada. Na URSS stalinista, na
Itália fascista ou na Cuba castrista a vítima sabia (ou sabe) que, após a
agressão simbólica coletiva, sujeita-se à prisão, a suplícios e, no limite, à
morte.
A tortura ocupa o topo da escala da
covardia. Tipicamente, é prática corriqueira de ditaduras, sejam elas de
direita ou de esquerda, religiosas ou laicas, conservadoras ou revolucionárias.
Mas, excepcionalmente, ocorre também em países democráticos.
Presos comuns sofrem maus-tratos em cadeias
brasileiras. Sob a "guerra ao terror" de George W. Bush, a CIA
comandou uma rede internacional de porões de suplício. Contudo, e isso é
crucial na avaliação do tuíte do filho do presidente, os responsáveis pela
tortura sempre negam sua ocorrência ou, ao menos, a existência de aval oficial
aos torturadores.
A negativa ritual decorre, obviamente, do
temor de hipotéticas implicações judiciais de longo prazo, especialmente depois
que a tortura foi classificada como crime contra a humanidade pelo Estatuto de
Roma, do Tribunal Penal Internacional, em 1998.
Mas a negativa tem outra fonte, mais
profunda, que é a vergonha. Carlos
Brilhante Ustra, primeiro militar brasileiro condenado por tortura, em 2008,
declarou-se inocente até o fim, contra todas as provas e sabendo que, ao abrigo
da Lei de Anistia, jamais cumpriria pena. O torturador foge ao estigma
vergonhoso da covardia extrema.
Eduardo Bolsonaro nasceu em 1984, no outono
do regime militar, quando já não havia tortura política no Brasil. Nunca
torturou ninguém e, portanto, não precisa conviver com uma mancha abjeta no seu
passado. Porém, ao contrário dos torturadores, orgulha-se dos atos de máxima
covardia alheia, celebrando a tortura. Minha tese: ele detona a escala da
covardia, exigindo uma redefinição de seu valor máximo.
O trágico, nisso, é que não estamos diante de um caso pessoal. O presidente, seu pai, classificou Ustra como "herói nacional" em agosto de 2019. O tuíte repulsivo deve ser lido como fotografia oficial de um governo que explodiu a escala da covardia.
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