O Globo
Foi no lançamento do disco da Áurea
Martins, “Senhora das folhas”, em que essa menina de 81 anos reverencia as
cantadeiras, rezadeiras e benzedeiras do Brasil. Teatro lotado, gente feliz se
abraçando na plateia como há muito tempo não se usava mais.
Áurea reluz no palco, cercada dos melhores
músicos, de convidados especiais. Entre uma incelença, uma prece, um ponto, ela
começa a entoar os versos da pernambucana Flaira Ferro:
— Se eu não tiver coragem/De enfrentar os meus
defeitos/De que forma, de que jeito/Eu vou me curar de mim?
Quem cantava com a voz da Áurea, naquele momento, era o Brasil. O Brasil que adoeceu do “nós contra eles” inoculado por Lula, inflamado por Dilma, supurado sob Bolsonaro. E que precisa de um banho de manjericão, Pra pedir pro santo/Pra rezar quebranto/Curar mau-olhado. Mas, antes, tem de se curar de si.
Se curar das milícias — a do miliciano hoje
no governo, com sua família de milicianos, seus amigos milicianos, sua ética de
miliciano. E a daquele que quer retornar ao poder e insufla a formação de
milícias para intimidar parlamentares e suas famílias (“Se a gente pegasse e
mapeasse o endereço de cada deputado e fosse [sic] 50 pessoas na casa do deputado (...) incomodar a
tranquilidade dele...”).
Se curar dessa gente que não deixa Deus em
paz. Que diz que “Deus é petista”, por acreditar que seu partido seja presidido
sob inspiração divina. Que quer “Deus acima de todos” — um Deus
fundamentalista, capaz de fazer vista grossa a pastores que roubam o futuro ao
cobrar pedágio em barras de ouro para liberar verbas para a Educação.
Se curar de quem despreza a cultura,
demoniza a ciência e se compraz com a própria ignorância. E de quem, para
manter a fama de “inimigo da zelite”, atribui “mentalidade escravista” a essa
mesma classe A que o apoia — e investe R$ 10 mil por mês para que seus
herdeiros sejam doutrinados à base de argumento de autoridade (“Me respeite,
porque sou doutor em antropologia. Não tenho opinião, sou especialista por
Harvard” — bufa o catedrático em autoritarismo, harvardiano de YouTube, sem
apreço ao diálogo).
Se curar de quem afirma que a classe média
ostenta — tendo no pulso o relógio (presente de um amigo) que custa algo como
700 botijões de gás. E de quem torra R$ 900 mil (dinheiro público, equivalente
ao Auxílio Brasil de 2.250 famílias) em férias e autopromoção.
Se curar desse cuja administração tramava
um superfaturamento de R$ 700 milhões na compra de ônibus
escolares e não tem como enviar ajuda humanitária à Ucrânia. E de quem, leviana e toscamente,
se jacta de que resolveria a crise com a Rússia numa mesa de bar.
Se curar de quem diz bravatas a
correligionários no curralzinho do Alvorada e vai, em seguida, ceder anéis,
dedos, mãos e braços ao Centrão. E de quem posa de progressista no curralzinho
da militância, para depois vir a público se desdizer (e ceder anéis, dedos
etc.) para não perder o voto dos conservadores.
Salve, salve a fé no amor/Que cura todo mal, a dor, canta Áurea, luminosa. O Brasil tem jeito. Só precisa, primeiro, se curar de si.
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