sábado, 9 de abril de 2022

Eduardo Affonso: Brasil precisa se curar de si

O Globo

Foi no lançamento do disco da Áurea Martins, “Senhora das folhas”, em que essa menina de 81 anos reverencia as cantadeiras, rezadeiras e benzedeiras do Brasil. Teatro lotado, gente feliz se abraçando na plateia como há muito tempo não se usava mais.

Áurea reluz no palco, cercada dos melhores músicos, de convidados especiais. Entre uma incelença, uma prece, um ponto, ela começa a entoar os versos da pernambucana Flaira Ferro:

— Se eu não tiver coragem/De enfrentar os meus defeitos/De que forma, de que jeito/Eu vou me curar de mim?

Quem cantava com a voz da Áurea, naquele momento, era o Brasil. O Brasil que adoeceu do “nós contra eles” inoculado por Lula, inflamado por Dilma, supurado sob Bolsonaro. E que precisa de um banho de manjericão, Pra pedir pro santo/Pra rezar quebranto/Curar mau-olhado. Mas, antes, tem de se curar de si.

Se curar das milícias — a do miliciano hoje no governo, com sua família de milicianos, seus amigos milicianos, sua ética de miliciano. E a daquele que quer retornar ao poder e insufla a formação de milícias para intimidar parlamentares e suas famílias (“Se a gente pegasse e mapeasse o endereço de cada deputado e fosse [sic] 50 pessoas na casa do deputado (...) incomodar a tranquilidade dele...”).

Se curar dessa gente que não deixa Deus em paz. Que diz que “Deus é petista”, por acreditar que seu partido seja presidido sob inspiração divina. Que quer “Deus acima de todos” — um Deus fundamentalista, capaz de fazer vista grossa a pastores que roubam o futuro ao cobrar pedágio em barras de ouro para liberar verbas para a Educação.

Se curar de quem despreza a cultura, demoniza a ciência e se compraz com a própria ignorância. E de quem, para manter a fama de “inimigo da zelite”, atribui “mentalidade escravista” a essa mesma classe A que o apoia — e investe R$ 10 mil por mês para que seus herdeiros sejam doutrinados à base de argumento de autoridade (“Me respeite, porque sou doutor em antropologia. Não tenho opinião, sou especialista por Harvard” — bufa o catedrático em autoritarismo, harvardiano de YouTube, sem apreço ao diálogo).

Se curar de quem afirma que a classe média ostenta — tendo no pulso o relógio (presente de um amigo) que custa algo como 700 botijões de gás. E de quem torra R$ 900 mil (dinheiro público, equivalente ao Auxílio Brasil de 2.250 famílias) em férias e autopromoção.

Se curar desse cuja administração tramava um superfaturamento de R$ 700 milhões na compra de ônibus escolares e não tem como enviar ajuda humanitária à Ucrânia. E de quem, leviana e toscamente, se jacta de que resolveria a crise com a Rússia numa mesa de bar.

Se curar de quem diz bravatas a correligionários no curralzinho do Alvorada e vai, em seguida, ceder anéis, dedos, mãos e braços ao Centrão. E de quem posa de progressista no curralzinho da militância, para depois vir a público se desdizer (e ceder anéis, dedos etc.) para não perder o voto dos conservadores.

Salve, salve a fé no amor/Que cura todo mal, a dor, canta Áurea, luminosa. O Brasil tem jeito. Só precisa, primeiro, se curar de si.

Nenhum comentário: