sábado, 9 de abril de 2022

Pablo Ortellado: Sabotagem na mobilização de entregadores

O Globo

Reportagem publicada nesta semana pela Agência Pública mostra como a rede iFood sabotou a campanha dos seus entregadores que pediam mais remuneração e melhores condições de trabalho. O jogo sujo incluiu a criação de contas falsas nas mídias sociais e a contratação de um falso manifestante para mudar a pauta de reivindicação nos protestos. A denúncia vem logo depois de uma avaliação da rede FairWork, que mediu a decência do trabalho, coordenada pela Universidade de Oxford, dar nota 2 à empresa numa escala até 10.

A iFood é líder no serviço de entrega de refeições. Estima-se que detenha mais de 80% do mercado brasileiro. Em julho de 2020, seus entregadores se organizaram nacionalmente para uma paralisação em 13 estados, exigindo pagamentos maiores, condições de trabalho melhores e medidas de proteção contra a Covid-19.

Foi para desbaratar essa mobilização nacional que a iFood contratou a agência Benjamin Comunicação, que depois subcontratou a agência SQi. A Benjamin é administrada pelo publicitário Lula Guimarães, que fez as campanhas de Marina Silva à Presidência em 2014 e de Geraldo Alckmin em 2018. A SQi é uma agência especializada em campanhas políticas e na gestão de crises. Foi contratada por João Doria para fazer o acompanhamento de mídias sociais.

As duas atuaram para desmobilizar os trabalhadores fazendo uso do que, no marketing político, se chama de “estratégia lado B”: a difusão de rumores por meio de contas falsas para atacar, desqualificar ou simplesmente atrapalhar o adversário. A reportagem da Pública, fartamente documentada, se baseou no depoimento de publicitários, trocas de mensagens entre a equipe, relatórios, atas de reunião e registros de videochamada.

A campanha contra os entregadores criou duas páginas contrárias à paralisação: Não Breca meu Trampo e Garfo na Caveira. Juntas, elas atingiram 3,16 milhões de usuários a partir de impulsionamentos pagos. As páginas eram alimentadas com postagens e memes defendendo o modelo de trabalho das empresas de entrega e denunciando a mobilização dos entregadores como “política”.

Tudo era feito para parecer que as páginas e os comentários eram escritos por entregadores, quando, na verdade, eram planejados por publicitários operando contas falsas. Em trocas de mensagens, os publicitários diziam que precisavam ser “mais tosqueira”, “mais escrachados” e que não deviam transmitir “a sensação que é uma agência por trás”, “sem deixar muito profissa”.

As postagens misturavam atitude pró-empresa e antimobilização com linguagem que imitava a dos entregadores. Uma postagem com uma foto de moto dizia: “A parada é a seguinte... Envolveu sindicato e politicagem já era irmão”. Outra, em linguagem carregada, afirmava: “A maioria dos motoca que trabalha no iFood, Uber Eats e Rappi prefere trabalhar pra diversas empresa, sem essa de carteira assinada”. Havia também postagens motivacionais, como aquela com a foto de um motoqueiro parado em frente a uma favela com os dizeres: “Não pare quando estiver cansado. Pare quando estiver tudo feito”.

No Twitter, as contas falsas polemizavam e debatiam constantemente com as contas dos ativistas que tentavam organizar a paralisação. Cerca de 12 publicitários trabalhavam diariamente para atrapalhar e desmobilizar os entregadores. Nos protestos, um funcionário da agência se passando por entregador tentou atrapalhar a demanda por melhor pagamento, insistindo que a pauta deveria ser a vacinação prioritária contra a Covid-19. Sua posição foi respaldada pelas páginas e por contas falsas.

Esse trabalho contra a organização dos trabalhadores choca por usar recursos comuns no jogo sujo das campanhas eleitorais. Choca também por ter sido encomendada pela iFood, que tenta projetar uma imagem de companhia social e ambientalmente responsável. Apesar do esforço de imagem, as relações de trabalho da empresa não são as melhores. A iFood não provou que consegue pagar o salário mínimo a seus entregadores, uma vez que são levadas em conta as oscilações das tarifas de remuneração das entregas e descontados os custos de manutenção dos veículos e a taxa da empresa.

Dos dez pontos avaliados pela FairWork, a iFood só conseguiu pontuar em dois. Um deles verificava se os termos e condições dos contratos eram transparentes. O outro avaliava se “existem mecanismos para dar voz ao trabalhador e liberdade de associação”. Chega a ser irônico que o que impediu a iFood de ter nota 1 tenha sido justamente a suposição de que respeitava o direito de associação dos entregadores.

 

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