O Globo
Reportagem publicada nesta semana pela
Agência Pública mostra como a rede iFood sabotou a campanha dos seus entregadores
que pediam mais remuneração e melhores condições de trabalho. O jogo sujo
incluiu a criação de contas falsas nas mídias sociais e a contratação de um
falso manifestante para mudar a pauta de reivindicação nos protestos. A
denúncia vem logo depois de uma avaliação da rede FairWork, que mediu a
decência do trabalho, coordenada pela Universidade de Oxford, dar nota 2 à
empresa numa escala até 10.
A iFood é líder no serviço de entrega de
refeições. Estima-se que detenha mais de 80% do mercado brasileiro. Em julho de
2020, seus entregadores se organizaram nacionalmente para uma paralisação em 13
estados, exigindo pagamentos maiores, condições de trabalho melhores e medidas
de proteção contra a Covid-19.
Foi para desbaratar essa mobilização nacional que a iFood contratou a agência Benjamin Comunicação, que depois subcontratou a agência SQi. A Benjamin é administrada pelo publicitário Lula Guimarães, que fez as campanhas de Marina Silva à Presidência em 2014 e de Geraldo Alckmin em 2018. A SQi é uma agência especializada em campanhas políticas e na gestão de crises. Foi contratada por João Doria para fazer o acompanhamento de mídias sociais.
As duas atuaram para desmobilizar os
trabalhadores fazendo uso do que, no marketing político, se chama de
“estratégia lado B”: a difusão de rumores por meio de contas falsas para
atacar, desqualificar ou simplesmente atrapalhar o adversário. A reportagem da
Pública, fartamente documentada, se baseou no depoimento de publicitários,
trocas de mensagens entre a equipe, relatórios, atas de reunião e registros de
videochamada.
A campanha contra os entregadores criou
duas páginas contrárias à paralisação: Não Breca meu Trampo e Garfo na Caveira.
Juntas, elas atingiram 3,16 milhões de usuários a partir de impulsionamentos
pagos. As páginas eram alimentadas com postagens e memes defendendo o modelo de
trabalho das empresas de entrega e denunciando a mobilização dos entregadores
como “política”.
Tudo era feito para parecer que as páginas
e os comentários eram escritos por entregadores, quando, na verdade, eram
planejados por publicitários operando contas falsas. Em trocas de mensagens, os
publicitários diziam que precisavam ser “mais tosqueira”, “mais escrachados” e
que não deviam transmitir “a sensação que é uma agência por trás”, “sem deixar
muito profissa”.
As postagens misturavam atitude pró-empresa
e antimobilização com linguagem que imitava a dos entregadores. Uma postagem
com uma foto de moto dizia: “A parada é a seguinte... Envolveu sindicato e
politicagem já era irmão”. Outra, em linguagem carregada, afirmava: “A maioria
dos motoca que trabalha no iFood, Uber Eats e Rappi prefere trabalhar pra
diversas empresa, sem essa de carteira assinada”. Havia também postagens
motivacionais, como aquela com a foto de um motoqueiro parado em frente a uma
favela com os dizeres: “Não pare quando estiver cansado. Pare quando estiver
tudo feito”.
No Twitter, as contas falsas polemizavam e
debatiam constantemente com as contas dos ativistas que tentavam organizar a
paralisação. Cerca de 12 publicitários trabalhavam diariamente para atrapalhar
e desmobilizar os entregadores. Nos protestos, um funcionário da agência se
passando por entregador tentou atrapalhar a demanda por melhor pagamento,
insistindo que a pauta deveria ser a vacinação prioritária contra a Covid-19.
Sua posição foi respaldada pelas páginas e por contas falsas.
Esse trabalho contra a organização dos
trabalhadores choca por usar recursos comuns no jogo sujo das campanhas
eleitorais. Choca também por ter sido encomendada pela iFood, que tenta
projetar uma imagem de companhia social e ambientalmente responsável. Apesar do
esforço de imagem, as relações de trabalho da empresa não são as melhores. A
iFood não provou que consegue pagar o salário mínimo a seus entregadores, uma
vez que são levadas em conta as oscilações das tarifas de remuneração das
entregas e descontados os custos de manutenção dos veículos e a taxa da
empresa.
Dos dez pontos avaliados pela FairWork, a
iFood só conseguiu pontuar em dois. Um deles verificava se os termos e
condições dos contratos eram transparentes. O outro avaliava se “existem
mecanismos para dar voz ao trabalhador e liberdade de associação”. Chega a ser
irônico que o que impediu a iFood de ter nota 1 tenha sido justamente a
suposição de que respeitava o direito de associação dos entregadores.
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