sábado, 9 de abril de 2022

Ascânio Seleme: O salto alto de Lula

O Globo

Em menos de dez dias, Jair Bolsonaro ameaçou duas vezes golpear a democracia brasileira… e o mundo veio abaixo porque Lula falou de aborto. Na terça-feira passada, o golpista deu sinal inequívoco do que pretende ao afirmar que as Forças Armadas podem ajudar o país “a rumar para a normalidade”. Na quarta-feira da semana anterior, disse que o povo armado não será escravizado e atacou ministros do STF. Já escrevi aqui que o presidente vai tentar dar um golpe. Uma prévia foi experimentada no dia 7 de setembro do ano passado, quando por muito pouco um grupo ensandecido não invadiu o Supremo Tribunal Federal. Mas, hoje, só se fala nas gafes do Lula.

Está certo, foram muitas gafes, podem atrapalhar a sua campanha e por isso merecem ser analisadas. Nota de Mônica Bergamo na “Folha” de quinta-feira talvez dê uma pista do que passa na cabeça do Lula nestes dias. A jornalista escreveu que empresários fazem fila para conversar com o petista em razão de sua liderança nas pesquisas eleitorais. E que Lula tem recusado reuniões mais amplas, fazendo exceção apenas aos mais chegados. Isso tem nome. Trata-se de soberba, mas pode ser chamado também pelo seu apelido popular: salto alto. Logo ele, que já reclamou publicamente do salto alto dos companheiros mais empolgados.

Foram alguns episódios. O primeiro, e talvez o mais importante, foi o do aborto. Lula tem razão, trata-se mesmo de uma grave questão de saúde pública, e ele apenas repetiu, com mais ilustração, o que sempre defendeu. Pregou tratamento igual para mulheres ricas e pobres que não querem seguir com uma gravidez indesejada, o que só ocorre se o aborto for legalizado. Poderia ter evitado o assunto, já não caberá a ele qualquer medida nesse sentido. Quem legaliza qualquer coisa no Brasil não é o presidente, mas o Congresso Nacional.

Desnecessário e errado foi o ataque desconcertante à classe média brasileira. Lula disse que ela “ostenta um padrão de vida acima do necessário”. O contingente atacado por Lula é formado por 105 milhões de brasileiros com renda média per capita que varia entre R$ 670 e R$ 3,7 mil. Francamente, você sabe, não dá para fazer extravagância com este tipo de ganho mensal. Lula também atacou a elite, que chamou de “escravista”. As classes média e alta, segundo o Datafolha, votam mais em Bolsonaro (38% e 39%) do que em Lula (27% e 26%).

Outro sinal da soberba foi pedir aos petistas que fossem “incomodar a tranquilidade” de parlamentares da oposição em suas casas. A fala do candidato reavivou o “nós contra eles” da era Dilma, quando parlamentares, juízes e jornalistas eram perseguidos e atacados verbalmente nas ruas, nos aeroportos, em suas casas. Quem não se lembra do ministro Gilmar Mendes sendo constrangido numa calçada de Lisboa? Petistas e antipetistas usavam o mesmo expediente que Lula propõe agora.

Lula errou também ao anunciar que demitiria oito mil militares do governo se ganhar a eleição (veja nota ao lado Macacão ou Farda). Nada contra, mas para quê comprar esta briga? Quer demitir, demite, mas não avisa antes. Em outro momento, o candidato disse a uma emissora de rádio do Paraná que eventualmente imagina que “Deus é petista”. Falou a tontice para elogiar a paranaense Gleisi Hoffmann. Num país religioso como o Brasil, não se brinca impunemente como essas coisas, menos ainda para se turbinar uma candidata a deputada.

Com mais de 40% das intenções de voto nas pesquisas, podendo ganhar no primeiro turno em todas elas, a situação de Lula é confortável. Talvez por isso tenha cometido os erros desta semana. O candidato levou uma bronca e recuou nas questões do aborto e da pressão da militância sobre parlamentares da oposição. A sorte de Lula é que ainda tem gente no PT com coragem para admoestá-lo, houve até quem dissesse para ele “falar menos e ouvir mais”. Recomendaram que antes de tratar de alguns temas sensíveis, escute especialistas. Seria a versão para campanha do “Ministério do Vai Dar Merda”, idealizado por Chico Buarque em 2003.

Macacão ou farda

Lula não poderia ter sido mais claro. Se for eleito, vai limar do governo federal oito mil militares encastelados por Jair Bolsonaro em postos do segundo e terceiro escalões. Faz muito bem. Fora as funções de natureza militar, as demais devem ser ocupadas pelos mais competentes. O fato de um cidadão usar farda e botina não o torna mais ou menos competente do que um outro de terno e gravata. O candidato deu esta declaração num evento na sede da CUT em São Paulo. O público vibrou com a novidade. Afinal, estes oito mil cargos podem ser ocupados por sindicalistas, como ocorreu em escala menor, mas ainda assim bem visível, nas administrações do PT. Não custa lembrar que macacão e pelego também não deixam ninguém mais eficiente.

Nem precisa

Gleisi Hoffmann foi aconselhada a evitar o assunto reforma trabalhista nos encontros que vem mantendo com empresários. O PT não quer fazer barulho que pode gerar desconforto eleitoral. Mas, e precisa tratar do tema? Claro que não. Quem não sabe que o Lula vai fazer o que for preciso para restabelecer direitos que os trabalhadores um dia tiveram e caíram com a reforma do governo Temer? Afinal, para quem se esqueceu, PT significa Partido dos Trabalhadores. E, depois, para que ficar insistindo no óbvio quando se sabe que qualquer mudança de lei, inclusive da lei que regula as relações do trabalho, precisa da aprovação do Congresso?

Degenerado

Tarcísio Gomes de Freitas, candidato de Bolsonaro a governador de São Paulo, disse que vai retirar as câmeras das fardas da PM paulista se for eleito em outubro. Segundo ele, o dispositivo inibe a ação da polícia. Seria um monumental retrocesso em favor da violência e da impunidade policial. Todo mundo sabe como melhoraram os índices policiais em corporações que usam as câmeras nos fardamentos. É incrível como tem gente que ainda gosta de andar para trás neste país, como Tarcísio. É de um volume mastodôntico. No caso do candidato, capitão reformado do Exército como o seu padrinho, é bom notar que quem puxa aos seus não degenera.

Vácuo de Moro

E agora, Pastore? O ex-presidente do Banco Central do governo Figueiredo, Affonso Celso Pastore, ficou pendurado no pincel com a implosão da candidatura de Sergio Moro.

Rumo à normalidade

Ninguém mais cai na lorota de que o governo Bolsonaro acabou com a corrupção. Vale citar apenas alguns casos: o nebuloso orçamento secreto; os pastores dourados do MEC; os R$ 730 milhões de superfaturamento nos ônibus do FNDE; os vendilhões de vacinas da Saúde; o sobrepreço de equipamentos comprados pela Codevasf; o recém descoberto kit robótica com preços abusivos para escolas sem água e esgoto; além das rachadinhas, lavagem de dinheiro e traficâncias da primeira família. Mas, sobretudo, não se pode esquecer de mencionar a maracutaia do Ministério da Defesa, que destinou R$ 21,6 milhões para construir quadras de futebol em cidades indicadas por senadores amigos. No total, a pasta do general Braga Netto desviou R$ 401 milhões, que deveriam ser destinados às suas atividades, para satisfazer 11 senadores aliados de Bolsonaro. Pois é, a mesma Defesa que o presidente acha que pode ajudar o país “a rumar para a normalidade”.

Vistas para cego

O prestador-geral de serviços Augusto Aras não falha. Ele pediu para o Supremo arquivar as ações contra o governo Bolsonaro por omissões no combate ao desmatamento da Amazônia. Seu pleito foi ineficiente, porque a ministra Cármen Lúcia, relatora do processo, votou determinando que o governo apresentasse em 60 dias um plano eficiente para o setor. Mas, aí apareceu o André Mendonça, que pediu vistas. Nem precisava. Só cegos não enxergam o desmonte do passador de boiada nas políticas ambientais brasileiras.

Nosso Rio

O vereador e ex-PM Gabriel Monteiro ainda será julgado pelos crimes a ele atribuídos. Mas já dá para dizer que a cada dia envergonha mais a qualidade da representação parlamentar do Rio. Nesse caso mais que envergonha. Enoja. Monteiro foi eleito no rastro do time da antipolítica inaugurado pela família Bolsonaro numa fraude monumental que ainda hoje muitos acreditam ser honesta. Depois de sete mandatos, o chefe do clã se apresentou como o novo no cenário, que acabaria com a corrupção política nacional. Com ele e seus zerinhos, materializaram-se essas figuras, algumas mais notórias, como o deputado Daniel Silveira e o ex-governador Wilson Witzel. E o eleitor do Rio? Com tanta pressão de milícias e igrejas evangélicas, é impossível impedir resultados deste tipo.

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