O Globo
Pouco antes da eclosão pandêmica da
Covid-19, a socióloga canadense Linsey McGoey lançou no mercado editorial de
língua inglesa “The unknowers”, ampla exploração do recurso à ignorância como
estratégia de poder. A obra da acadêmica chegou em boa hora. Ao focar na
“ignorância estratégica” usada por pilantras e/ou donos do poder no curso da
História, ela desemboca com força nas políticas populistas dos tempos atuais. E
nos convida a compreender o conceito de “ignorância” não como contraponto a
conhecimento ou interesse, mas como uma arena de disputa pelo poder social.
McGoey demonstra quanto esse conceito floresceu como parte inerente do poder
político e do big
business em democracias capitalistas. A essência do trabalho
está em apontar para o que a autora considera ser ainda o embate central nas
sociedades industrializadas do Ocidente: o que não perguntar, o que precisa
permanecer escondido.
No auge da pandemia, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, conclamou seus seguidores, com todas as letras, a diminuir o ritmo de testes de Covid-19 porque a testagem em massa revelaria uma quantidade alarmante de casos. Caso clássico de poderoso que recorre a um deliberado não saber para apaziguar a opinião pública em momento vulnerável. Seguiu-o quem quis, segundo a hierarquia de acesso e interesse por conhecimento de cada um. Mas, como lembra McGoey, a opção individual pelo não saber nada tem de neutra — sempre foi condicionada pelo leque de vantagens/desvantagens sociais, raciais e econômicas de cada um. Foi Trump quem exerceu o privilégio de nada perguntar, para não ser responsabilizado pela rejeição ao uso de máscaras e a um mapeamento nacional de infectados. Nesta semana os EUA ultrapassaram a marca de 1 milhão de mortos sufocados pelo vírus. A opção de Trump pelo desconhecimento alheio deixou 1 milhão de famílias americanas em luto — todo um mundo sumiu, entre amigos e vizinhos, colegas e parceiros, companheiros no ser e no viver.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro
jogou ainda mais pesado com o poder de ignorar o conhecimento. Demonizou as
vacinas como se defendesse a superioridade do macho brasileiro, branco e
hétero. Sem o estupendo desempenho do Sistema Único de Saúde (único em todos os
bons sentidos), somado à ampla aceitação popular das vacinas disponíveis, a
mortandade nacional (665 mil até agora) talvez superasse a dos Estados Unidos.
O próximo embate, já em franco andamento,
se dará nas eleições de outubro próximo. Segundo a autora canadense, eleições
em nações democráticas governadas por populistas radicais servem de cenário
frondoso para o exercício da tal “ignorância estratégica”. McGoey relembra o
voto britânico contra a permanência do Reino Unido na União Europeia e a
eleição de Trump em 2016. Ambos foram fartamente atribuídos à ignorância
popular. “The unknowers”, ao contrário, se dedica a explorar a eficácia da
receita usada pelo primeiro-ministro Boris Johnson, na Inglaterra, e por Trump
nos Estados Unidos. A receita — desinformação mais discurso sensacionalista — é
poderosa. Democracias, mesmo quando sobrevivem, ficam com sequelas dos ataques
recebidos. Elas podem se tornar permanentes. Vale registrar que, nas eleições
parciais desta semana, todos os candidatos apoiados por Trump saíram
vitoriosos. Em seu exílio folheado a ouro de Mar-A-Lago, o “45º presidente dos
EUA”, como ele passou a se intitular oficialmente, nunca deixou de ser o
preferido do Partido Republicano para disputar um segundo mandato.
Essa assombração foi tida como inimaginável
depois da tentativa de golpe com invasão do Congresso. Ela existe devido ao
acovardamento dos senadores que não votaram pelo impeachment de Trump após sua
saída da Casa Branca. A única finalidade de um impeachment post factum seria a
futura inelegibilidade do ex-presidente a qualquer cargo público.
Segundo a Agência Pública, na gaveta do
presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, estão 143 documentos, dos
quais 89 são pedidos originais de impeachment de Jair Bolsonaro, sete
aditamentos e 47 pedidos duplicados. Míseros sete chegaram a ser analisados,
descartados ou arquivados. Os outros 136 aguardam análise. E assim
permanecerão. O próximo marco civilizatório do país, portanto, está fincado na
eleição de outubro. Convém não se perder no caminho.
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