A coluna de hoje é dedicada à memória de
Eliana Kertész, artista essencial e política ocasional que nos deixou há 5 anos
e que faria aniversário nesse sábado. Ela sempre quis muito, mesmo sendo modesta.
Faz falta em tempos sombrios.
Até aqui, maio de 2022, a pré-campanha do
ex-presidente de República, Luiz Ignácio Lula da Silva, resolveu emular duas
das suas cinco campanhas presidenciais anteriores. A primeira, de 1989, desponta
através do jingle da estrela, que emociona pessoas maduras e jovens em shows de
MPB (e as reuniria também em comícios e atos de rua, se já estivessem ocorrendo
ou se ainda puderem ocorrer) e através de clipes que circulam em redes e outros
ambientes jovens e/ou “progressistas”, em universidades, no mundo da cultura e do
trabalho tradicionalmente organizado. A emulação
da última, de 2006 - em que a esperança se reelegeu já como promessa oficial,
livre do medo conservador ao PT, vencido em 2002 e durante o mandato cumpridor
de contratos com o mundo da economia, embora não tão zeloso no trato com a
República -, mira públicos mais populares e menos descolados. Enquanto o
partido, animado, faz seu líder recordar a glória ideológica da derrota de
1989, seu atual vice recorda-lhe, em carne e osso, a vitória de 2006, obtida já
no manejo da pequena política e do script do nós x eles.
Nesse tom, fica em boa hora esquecido o
tempo das oposições ranzinzas de 1994 e 1998, mas, também, o da “Carta aos
Brasileiros” de 2002, momento ímpar na trajetória do líder em que ele, de fato,
se retratou na moldura plural do Brasil. Na feliz expressão da jornalista Dora
Kramer, o centrismo fake de Lula é um dado concreto a ser considerado para se
bem entender o atual contexto e não se viajar na maionese ou exagerar no alho,
por mais que seja intragável o bugalho que a extrema-direita nos serve.
Nada a objetar quanto ao direito legítimo
do PT e de Lula fazerem a escolha política que estão fazendo. A ampla e
sustentada liderança nas pesquisas autoriza a ambição de vencer a eleição com
uma frente de esquerda, que é o que até aqui existe. Para se viabilizar a chapa
com uma piscada simbólica ao centro, Geraldo Alckmin precisou se filiar ao
Partido Socialista. Basta olhar para o que está acontecendo, por exemplo, em
Minas Gerais, com as tratativas entre PT e PSD, para se ter ideia do problema
que haveria se Alckmin, ao escolher seu novo P, juntasse ao S um D, em vez do
B.
O impasse não seria culpa de Alckmin, do PT ou do PSD. Nesses assuntos não cabe buscar culpados. Cabe, no caso, entender o fato de que, no momento, o PT e partidos fora da esquerda não estão se sentindo reciprocamente à vontade para celebrar alianças em prol da candidatura de Lula. Nenhuma tragédia há nisso (a eleição é em dois turnos) e o fato em si não merece censura alguma. O que se deve cobrar do líder das pesquisas não é que mude seu filme. É que não tente nos vender uma versão pirata.
Pautas incontornáveis
Se “defesa da soberania nacional” é um eixo
relevante da campanha e se a esse eixo se vincula “defesa das estatais” não se
pode esperar apoio automático de liberais ou mesmo de socialdemocratas fora da
esquerda imantada pelo PT, quando esse discurso causa incômodos até em petistas
e socialistas não alinhados com a atitude anti-liberal predominante em seu
campo. Do mesmo modo ocorre se diretrizes econômicas para “reconstrução do
Brasil” implicam em “não haver teto de gastos” e em questionar a reforma
trabalhista. O que se quer com isso é legitimar eleitoralmente antigos
postulados da esquerda do século XX, abraçados por muitos dos seus mais
relevantes atores de hoje no Brasil. A esquerda – ainda mais estando
razoavelmente unida, como está - tem direito democrático de submeter essa
agenda ao eleitorado. E deve reconhecer o mesmo direito a quem discorda dela e
pretende propor uma agenda liberal em economia, assim como o de quem defende
começar já – pela estrada principal da política e não por uma vicinal - um
trajeto que nos leve, em futuro aprazado, a uma economia de baixo carbono.
Naturalmente o ex-presidente Lula, por
vezes, veicula versões nuançadas das diretrizes anunciadas. Isso posto, é razoável supor que ele não
coloque todas as estatais no mesmo patamar, que não pense em governar sem algum
controle de gastos e que não queira atirar no lixo a reforma trabalhista, mas
revisá-la, negociando, como deve, com associações empresariais e sindicatos de
trabalhadores. Tudo isso é sensato e acalma, além do fato de que todas as propostas
que impliquem em legislação deverão ir ao Congresso, a instância que dará as
últimas palavras. Porém, numa democracia que faça jus ao nome, essas ressalvas
não bastam para permitir que um candidato receba prévio apoio eleitoral de uma
ampla frente democrática. Se Lula quer fazer essa frente já no primeiro turno,
é preciso um script adequado. E se entender com adversários para ganhar aliados
firmes e não aderentes céticos, alinhados por sucção.
O argumento em contrário à necessidade
desse tipo de concertação é quase sempre o da pouca relevância eleitoral das
objeções, feitas por liberais e centristas, à pauta econômica da esquerda. Quem
não tem voto não precisaria ser ouvido pois a hora é de eleição. Ok, se assim é
que façam a farta colheita eleitoral, sem precisar se preocupar com candidatos presidenciais
eleitoralmente nanicos, nem cooptar parlamentares e quadros dirigentes dos seus
partidos. Os apoios virão naturalmente, basta esperar. Ouso cogitar, na
contramão das pesquisas e na mão das buscas de cooptação que se tem visto por
aí, que Lula sabe que é uma imprudência descansar diante do novo perfil “liberal”
do eleitorado brasileiro, detectado, após a derrota inglória de 2018, por pesquisas
de entidades assessoras do próprio PT.
Raciocínio análogo ao feito para a pauta
econômica vale para a chamada pauta de costumes. Assim como liberais em
economia, partidos e eleitores conservadores naquele terreno terão dificuldades
em apoiar, logo no primeiro turno, um candidato que abrace pautas consideradas
progressistas. A analogia para por aí, porque, nesse caso, as objeções têm peso
eleitoral relevantíssimo, como demonstrado em recente pesquisa do Genial Quaest,
seja pela captação do deslocamento do voto evangélico na direção de Bolsonaro,
seja na mensuração direta do potencial impacto negativo da posição de Lula
sobre o aborto. O fato de a questão não
ser da competência da Presidência da República não deixa de ser um álibi para
que o candidato da esquerda evite ser colocado em situações de aperto. Porém,
nem sempre são as devidas atribuições constitucionais que ditam o grau de
prioridade de um tema no debate eleitoral. A possibilidade de temas como aborto,
ao qual o voto religioso é sensível, serem inseridos na polarização é real e são
limitados os movimentos de Lula para evitá-los. A hipótese de o voto
conservador, nesse terreno de religião e família, ter Bolsonaro como sua única
opção deve preocupar seriamente o rival e é uma razão a mais para que ele reflita
melhor sobre sua estratégia de ajudar a interditar terceiras vias.
Ademais, o “Lula lá” de há quase um quarto
de século era toque de reunir para boa parte do mundo da cultura universitária
e artística e para atores ideológicos esquerdistas, que respiravam democracia
direta num país recém-democratizado. Chamados pela energia que emanava da
figura de Lula, estavam dispostos a resgatar um Brasil profundo. Esse estaria pulsando
em atores sociais irredentos do campo e das favelas urbanas, a serem atraídos
para a órbita do Brasil operário mobilizado pelo líder emergente que, a juízo
daquela vanguarda que se queria horizontal, era a melhor expressão do nosso moderno.
Naquele momento, as pautas identitárias progressistas habitavam os rodapés das
páginas dos programas de esquerda, ao contrário do que ocorria em democracias avançadas,
especialmente a norte-americana. Hoje é bem outro o Brasil profundo que emerge
do poente rural para outro moderno, nas franjas do agronegócio e ao som da nova
música sertaneja, conectando-se a metrópoles por evangelhos pentecostais. Suas
convicções identitárias e religiosas soldam a pauta política de Bolsonaro. Na
outra ponta, pautas identitárias progressistas pedem passagem, pressionam o
candidato da esquerda, assim como pressionaram e penetraram nos partidos. Esse
é mais um complicador para se formar uma frente que atraia, no primeiro turno,
desde eleitores do PSOL até os de setores mais à direita da terceira via.
Nas circunstâncias de sociedade civil e
sociedade política mais plurais do que as do tempo da campanha de 1989 e num
país que viveu a experiência de quase 14 anos de governos petistas em Brasília,
além de governos subnacionais, a quem Lula se dirige mesmo quando sugere não se
ter medo de ser feliz? Nenhum espanto deve causar a existência de ouvidos
moucos entre tantos quantos olham para trás e avaliam que foram infelizes
durante aqueles anos que, para a campanha de Lula, foram anos dourados. Inútil estigmatizá-los como estranhos ao
Brasil porque foram 57 milhões em 2018 e seja a marca de hoje a mesma, maior,
ou menor, serão, de todo o modo, muitos em 2022, o suficiente para prolongar,
para além dos resultados das urnas, os conflitos que vivemos hoje. Se não se
quer que toda essa multidão de eleitores retorne ao colo do Bonaparte das
milícias é preciso haver quem lhes diga palavras democráticas que escutem. Precisamente
porque Lula não pode dizê-las, por razões já expostas, não sai de pauta a
quebra (ao menos a atenuação), da polarização atual por uma terceira via,
jocosamente tratada, há meses, como uma “tal”, por engenheiros de obras prontas
e até por respeitáveis analistas.
Está mais do que evidente que os horrores
desses três anos e meio não foram bastantes para vacinar o eleitorado
brasileiro contra o perigo de sua contínua reiteração, seja pela improvável reeleição
do seu promotor, seja pela sua provável legitimação, nas urnas, como principal chefe
e força de oposição. A hipótese do seu impedimento não teve apoio no Congresso
e tudo até aqui indica que sua exclusão do segundo turno não tem apoio no povo.
É essa, a meu ver, a leitura mais contundentemente realista que se poderá fazer
do fracasso de uma agregação de forças centristas para disputarem as eleições, caso
esse fracasso, de fato, se consume. Ele roubará do Brasil a chance de optar
entre duas saídas democráticas distintas, ou de fazer, no segundo turno, uma
convergência republicana consistente. Fora a extrema-direita, ninguém mais
deveria ser feliz com a perda dessa chance, porque ela significa grave
adiamento de qualquer futuro comum. Sair-se da eleição como nela entramos,
polarizados entre o que seja o bem e o mal para cada qual, é, no mínimo, condenar
a democracia brasileira a quatro anos de UTI.
Diante da majestade de um perigo manifesto como
fato, são dois os caminhos que se colocam para a convergência republicana e democrática
que - também de fato - existe no Brasil e precisa se ampliar em direção ao
maciço biombo conservador que Bolsonaro usa como escudo para sua aventura
destrutiva. Essa convergência não pode nem deve ser eleitoral no primeiro
turno, mas tem sido (e precisa ser cada vez mais) uma barragem institucional e
política ampla e efetiva nos momentos de maior risco para a democracia. Dos seus
dois caminhos tratarei a seguir, com a atenção e o respeito que ambos merecem.
Entre evitar o segundo turno ou
fazer dele um caminho
Pesos pesados do seleto rol de políticos lúcidos
e merecedores de respeito tomam o primeiro caminho. O mais recente foi o
ex-senador e ex-ministro Aloísio Nunes Ferreira. O argumento é cristalino: só
restam, hoje, duas vias, a democracia e o fascismo. Impossível que democratas
responsáveis discordem disso, ainda que possam discutir o uso do termo fascismo
para nomear a arruaça em curso. Afinal, nove entre dez estrelas do nosso teto
dão luz à visão de Bolsonaro presente no segundo turno e a décima, que ainda
poderia iluminar uma esperança de nos aliviar dessa sina, está escondida entre
nuvens densas.
O argumento persuasivo leva, no caso de
Ferreira e de outros políticos igualmente dignos de crédito, a concluir que um
segundo turno mais sangrento pode e deve ser evitado e que, para tanto, uma
frente democrática única pode e deve ser antecipada para o primeiro turno,
reconhecendo assim que um segundo turno já se dá na prática, pela consolidação
irreversível da polarização entre Lula e Bolsonaro. A avaliação de que essa
antecipação é possível e a prescrição de caminho de ação que dessa avaliação
decorre não permitem que a conclusão provoque o mesmo consenso firmado em torno da premissa.
A possibilidade de formar essa frente de
modo politicamente consistente esbarra em legítimos problemas de pauta política,
aqui já discutidos e também na intricada teia federativa, que faz de arranjos
políticos regionais um jogo complexo. Essa complexidade não pode ser
desqualificada, ou vista como patológica, porque está, de fato, também em jogo,
nessas eleições, o destino da política subnacional, cuja importância e
dignidade não devem ser subestimadas, como ficou patente no combate que estados
e municípios travaram contra a pandemia, sob sabotagem aberta do governo
federal.
Quanto à conveniência da antecipação, o
não-consenso verifica-se em dois pontos. Primeiro sobre se será mesmo a melhor
tática contra a extrema-direita apostar num confronto direto e binário entre
ela e uma candidatura de esquerda, mesmo a de um político de inegável
popularidade, com experiência de Estado e mesmo que esse líder esteja
sinceramente disposto a caminhar em direção ao centro. Há quem argumente,
também sinceramente, que a memória simbólica do eleitorado é mais forte para
conservar o antipetismo como fator relevante do que movimentos racionais pela
sua reversão, ainda mais quando se sabe das dificuldades de Lula para abandonar
a narrativa de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe. Essa
renitência provoca coesão, em vez de distensão, no voto antipetista. O receio
não chega a ser que isso custe a eleição de Lula (as pesquisas tendem a
tranquilizar quanto a esse ponto) mas a estabilidade política do seu governo e
que facilite, antes disso, maior apoio social à mais que provável atitude de
Bolsonaro de questionar o resultado eleitoral. A ideia de resolver tudo no
primeiro turno implica em renunciar à possibilidade de uma vitória folgada,
maiúscula e irrefutável, num segundo turno antecedido por um amplo entendimento
entre as distintas forças democráticas, balizado pelos seus respectivos pesos
eleitorais auferidos num primeiro turno em que ocorra debate e não duelo.
Chego assim ao segundo ponto que é
legitimamente levantado pelos céticos em relação à conveniência do primeiro
caminho. A adesão a Lula agora, por parte de partidos de diferentes zonas do
centro democrático, tende a padecer, ou de insuficiente amplitude ou de baixa
sustentabilidade política. No primeiro caso Bolsonaro será o óbvio
beneficiário, como desaguadouro dos votos dos que não se sentirem incluídos ou
representados no desenho de uma frente democrática de raio limitado. No segundo
caso, pode-se cair no quadro desmobilizador a que levam apoios compulsórios e
altamente críticos. Grassa perigosamente, no centro democrático, a ideia -
também circulante em ambientes psolistas - de apoiar Lula agora “porque não há
outro jeito”, surgindo, como corolário dessa resignação, uma predisposição
consoladora a, passado o perigo fascista, organizar durante os próximos quatro
anos, a oposição ao PT. Mas como se realizaria essa fantasia? O lugar de
oposição principal estará ocupado pela extrema-direita, como está ocupado,
desde 2019, pelo PT. O chamado à unidade
democrática será cotidiano para defender o governo democrático de ameaças
golpistas.
A lógica binária não se extinguirá com a
vitória de Lula, menos ainda se ele contar com apoio do centro por mera força
de gravidade. Apoiar e relaxar é a pior coisa a se fazer no momento, inclusive
do ponto de vista de quem teme – e me incluo entre esses - uma grande ofensiva
golpista antes, durante ou após as eleições. Que ela ocorrerá é quase certeza,
embora seu êxito final seja improvável. Enfrentar essa ameaça seria mais
complicado se restasse, na cena eleitoral, apenas a campanha da esquerda, com
apoio recuado ou tácito, quando não silêncio obsequioso, do restante do campo
democrático. A desmobilização das demais campanhas traria limitação, não
expansão da resistência a um golpe.
Todas essas incertezas legitimam a defesa
do segundo caminho, qual seja a insistência na busca de uma nova hipótese de terceira
via, entre MDB, PSDB e Cidadania que, a essa altura dos acontecimentos, como
opinei nesta coluna há três semanas, tem em Simone Tebet o único nome de
unidade possível. Além desse hipotético núcleo, o segundo caminho nutre-se da
hipótese já posta da candidatura de Ciro Gomes. Já a hipótese de junção
imediata desses dois focos aspirantes a mitigar e moderar a polarização
principal, não se coloca, por motivos análogos aos que inviabilizam a formação
de uma frente única das oposições no primeiro turno. Há pelo menos duas pedras,
no caminho do entendimento imediato entre Ciro e Simone, que são difíceis de
remover. Uma é a agenda econômica, outra a manutenção, no discurso de Ciro, do
anátema que ele dirige - em coro com o PT e de modo até mais enfático que o de
Lula – aos políticos e partidos centristas, por terem dado um suposto golpe em
2016. A relação entre ele e Tebet não pode ser de cooptação. Mas nada impede,
salvo se neles houver desejos em contrário, que seja de cooperação em alto
nível. É uma cooperação recomendada não só por valores democráticos e
pluralistas, também por mútuo interesse, pois nenhum dos dois chegará a lugar algum
sem se beneficiar de virtuais efeitos da campanha do outro. Simone atuando junto
ao campo liberal para conter votos que estão indo para Bolsonaro e Ciro
fincando estaca na centro esquerda como alternativa a Lula exercerão um duplo
efeito moderador da polarização sem limites que tende a se cristalizar num
cenário binário. Se houver uma hora das duas candidaturas fundirem-se com base
em pesquisas será no tempo das convenções ou até depois disso, caso alguma delas,
ou ambas, adquiram alguma relevância quantitativa. Ilógico ser agora quando,
embora Ciro esteja à frente de Simone nesse quesito importante, a polarização
entre os principais é extrema e nenhum dos dois do "centro" saiu de
um dígito nas intenções de voto.
Falando especificamente do trio de partidos
que se entende atualmente, ele compartilha com o conjunto dos que em algum
momento se declararam dispostos a constituir uma terceira via, duas
deficiências básicas, que são a um só tempo causa e consequência de sua falta
de unidade. Primeiro falta-lhe, como é óbvio, votos, não tendo surgido, nesse
campo, ninguém que possa sequer fazer cócegas na popularidade de Lula. Mas
faltou-lhe também, durante todo o governo Bolsonaro até aqui, articulação fluente
“por cima”. Ela faltou, por exemplo, com a cúpula do Congresso, tanto para fazer
prosperar um impeachment quanto para, no mínimo, dissuadir parte do centrão da adesão
ao governo, através de entendimentos em torno de matérias congressuais e/ou
antecipando arranjos políticos regionais. Faltou também com militares da ativa,
para interditar a propagação do golpismo, uma vez que a sua politização é uma
realidade imposta pelo recrutamento de quadros seus para o governo de
Bolsonaro. Insuficiente também com o empresariado, para escutar e propor
alternativas de futuro superiores à relação instável, cativa do curto prazo,
que lhe oferece Bolsonaro. E insuficiente
ainda com a imprensa, que aos poucos foi percebendo a inconsistência do
agrupamento e assim deixando de levar a terceira via a sério. Em suma os
partidos centristas além de não se qualificarem eleitoralmente, também não
lograram interagir de modo consequente com a própria elite política que compõem
e com as demais elites do país.
Deixo de lado a busca dos por quês. A hora não
é de balanço das circunstâncias objetivas determinantes, nem dos erros, porque
o processo não terminou e há uma eleição no horizonte, tentação irresistível
para qualquer democrata. A realidade cobra ação dessas forças e tal não pode se
dar por mera vontade.
Os centristas não podem brigar com a
polarização que se firmou. Se a pergunta é se ainda podem evitá-la a resposta é
não. Se é sobre a possibilidade de influírem para que ela seja manos danosa
para eles mesmos e para a democracia, a resposta é sim e o meio é a frente
democrática, não para disputar, mas para garantir as eleições e defender a
Constituição. Também é sim a resposta sobre se podem contribuir para que a
polarização seja menos excludente do ponto de vista político e, nesse caso, a
contribuição do centro é diversificar e qualificar o cardápio eleitoral
lançando de fato a candidatura de Simone Tebet. Fazendo isso qualificar melhor
também o discurso da campanha de Lula, levando a que as nuances do candidato
favorito prevaleçam sobre os dogmas dos seus interlocutores favoritos. No
limite, até mesmo Bolsonaro tenderia a domar suas febres, pela presença de uma
candidata assertiva em seus calcanhares.
Em adição a tudo isso, a de Simone Tebet
poderá ser uma candidatura resgatadora das trajetórias recentes dos três
partidos. Em 2016 o centro
liberal-democrático criou uma polarização política com o PT ao liderar o
processo do impeachment num Congresso agitado à direita, mas sem norte político
positivo. Na sequência, porém (já bati nessa tecla aqui algumas vezes),
contraiu uma dívida abissal com a sociedade e o eleitorado brasileiros ao se
eximir de se apresentar igualmente unificado nas eleições de 2018. Era o mínimo
que lhe cabia após processo tão traumático. No entanto, cada parte daquela
aliança que promoveu uma solução institucional e constitucional para o impasse
paralisante do governo Dilma foi cuidar da própria vida. Negaram apoio
consistente ao governo de transição que criaram e cederam às pressões de uma
polarização entre o PT e a lava-jato. Enquanto a candidatura de Ciro Gomes, a
alternativa de centro-esquerda, era pautada, como até hoje, pelo discurso petista
do golpe, os partidos do centro deixarem-se pautar pela lava-Jato e largaram de
mão o governo, na esperança de escapar dos artilheiros de Curitiba e suas
ramificações Brasil afora, com simpatias estabelecidas no STF. Dois desses
partidos (PSDB e Cidadania, hoje federados) pagam o preço de um momento de
pusilanimidade política. Uma reincidência não terá perdão. O Cidadania dá
passos decisivos para reverter aquela atitude, reaprendendo aos poucos a
pedagogia unitária da política do antigo PCB, do qual descende. O PSDB tem mais
problemas, mas possui relevância para se decidir um pouco mais adiante e ser
acolhido com a reverência compatível com os serviços que já prestou ao
país. Já o MDB está com a bola e precisa
dar o passe inicial abrindo para sua candidata as portas da publicidade que for
possível.
Uma candidatura feminina de uma senadora
democrata e respeitável, que conta com apoio razoável na cúpula de um MDB
sobrevivente às condenações de Eduardo Cunha, Sergio Cabral, Geddel Viera Lima
e Henrique Eduardo Alves e póstero ao declínio político de Romero Jucá, Eunício
Oliveira e Eliseu Padilha é algo que desperta mais curiosidade e interrogações
do que rejeição e vaticínios. A renovação compulsória desse partido foi mais extensa do que a que se deu
no PT. Ainda não se apresentou ao eleitorado nacional para que se saiba se nele
os episódios mais recentes calam os ecos democráticos da sua história. Simone
Tebet é uma chance de refazer seu caminho por uma linha reta. Sem ela o
processo corre o risco de acabar em mixórdia. Partido que veste bem a carapuça
do slogan que o PT pretende estender a todos, mas é antes de tudo seu, o MDB
também pode encarar a eleição sem medo de ser feliz.
Militantes intransigentes e analistas
angustiados por vezes desqualificam moralmente a realidade do não-consenso
eleitoral, jogando sobre os ombros de quem não está convencido da possibilidade
e da conveniência da antecipação política do segundo turno o peso da
responsabilidade sobre um eventual fortalecimento de Bolsonaro durante as
quatro semanas de outubro. Ancorados nesse argumento, operadores políticos do
campo lulista esforçam-se para acelerar o esfarelamento de partidos do centro
como meio de interditar até a modesta rua em que ainda se pode converter “a
tal” da terceira via. Ao mesmo tempo
movem, nas redes sociais e em outros espaços, uma campanha de desestabilização
da candidatura de Ciro Gomes que, combinada com o assédio de Lula ao PDT,
antecipa, cinco meses antes das eleições, uma alta pressão pelo voto útil. É de
importância capital que esses passos sejam revistos. Se uma das caras da
terceira via for a de Simone Tebet, penso que haverá motivos de inquietação nas
hostes de Bolsonaro, enquanto nas de Lula haverá apenas o risco saudável de ter
que calibrar o discurso para travar, não só o bom combate contra um autocrata
como também o bom debate com uma adversária democrática. Já que Bolsonaro
parece impor sua presença na hora decisiva, se surpresas não ocorrerem – e
surpresas aqui serão também sinais de vida - o processo político tocado com
prudência reunirá ambos, solidaria e ativamente, num palanque vitorioso e mais
sustentável, no segundo turno.
Recorro ao livro inesquecível de Maria
Alice Rezende de Carvalho sobre André Rebouças (“O quinto século: André
Rebouças e a construção do Brasil”) para comparar, sem licença da autora, a frustração da alma do seu protagonista - indo
da resignação apenas racionalizada (sem aceitação emocional) com a queda da
monarquia e ascensão de uma república incivil, até o suicídio - com o “moderatismo” de Joaquim Nabuco, que o
leva a uma racionalização de outro tipo, conciliada com seu sentimento e
percepção da política como média e não como catarse. Da visão da monarquia finda
como república até a possibilidade de republicanização da república empírica, ele
chegaria ao panamericanismo como forma de manter viva, pela diplomacia, as
possibilidades da política. Está em aberto aonde chegaremos nós, mas há boa
chance de se chegar a um bom porto pelo caminho surpreendente da grande
política.
Já concluímos o primeiro quinto do nosso sexto século e merecemos futuro. O que será impossível se não vivermos o presente inteiro, sem atalhos. O presente demora, a lei da gravidade tem pressa e vale, mas não é a única que nele vigora. Nada desaparece antes da hora. Prazo de validade esgotado é o dos fantasmas ideológicos, inclusive fantasminhas camaradas (essa imagem, sexagenários entenderão, a turma jovem vai precisar do tio Google). Passou da hora de saírem da nossa vida e entrarem na História.
*Cientista político
e professor da UFBa
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