O Estado de S. Paulo
Desarmar as armadilhas do terreno novo em
que pisamos, e pacificar o País, representará um feito histórico.
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos
certamente gostariam de nos conduzir para um cenário de duelo fatal entre
direita e esquerda, ou entre o bem e o mal, na sucessão próxima, instalando um
clima de roleta-russa e conflagrando ainda mais o País. Para tanto, teriam a
seu favor a rarefação do centro político e a dificuldade de afirmação de um
campo que se quer, por princípio, distante de polos extremos, seja lá o juízo
que fizermos sobre a simetria, ou não, de tais polos.
Expulsa pela porta, a questão do centro
costuma retornar pela janela, ainda mais num contexto desequilibrado por um
governo de extrema-direita, com raso apreço pela institucionalidade. E retorna
de variadas formas, traduzindo-se até de modo “filosófico”. O centro, como
querem alguns, é menos “aristotélico” do que “hegeliano”, definindo-se antes
como relação de forças em tensão do que como termo médio espacialmente
definido. Nada muito distante do elo que políticos sagazes agarram e, a partir
daí, controlam toda a corrente, por discernirem o problema decisivo de uma
conjuntura. Ou, se quisermos, o centro desta mesma conjuntura.
O cerne das nossas atribulações é o perigo autoritário que põe em risco a convivência civil. Não se trata de perigo inédito na História recente. Sem nos alongarmos, há não mais do que uma ou duas gerações configurou-se, de fato, uma questão democrática de natureza que ao menos lembra a de agora. Tempos certamente mais sombrios, uma vez que a anarquia institucional, típica de todo regime de força, parecia requerer soluções radicais para sua superação: por exemplo, o voto nulo, a autodissolução do MDB e, consequentemente, a denúncia da via eleitoral.
Políticos de envergadura incomum, como
Ulysses, Tancredo e Montoro, souberam interpretar o seu momento. Eram o
“centro” em sentido estrito, com interlocução à esquerda, especialmente a que
se reunia em torno do velho PCB, debilitado e clandestino, mas ainda influente.
O fato de que efetivamente tinham nas mãos o elo mais forte da corrente se
evidenciaria nas memoráveis eleições de 1974, reveladoras de que o ponto de
equilíbrio da sociedade havia se deslocado positivamente. As eleições daquele
ano valiam pelos números que traziam e pelas mudanças que expressavam. Por
isso, prenunciavam outros acontecimentos auspiciosos, como a anistia e a
Constituinte, e se firmavam como forma superior de luta, como é justo que seja
na rotina das sociedades civilizadas.
A esquerda petista, hoje, está desafiada a
repetir em sentido inverso o caminho trilhado pelos pais-fundadores do Brasil
politicamente moderno. Nela, como sabemos, convivem elementos díspares que nem
sempre se consegue decifrar com facilidade. Não há no código genético do
partido informação que induza à ruptura institucional. Nem de longe o PT é um
partido antissistema, como o foram os partidos comunistas ocidentais antes da
progressiva incorporação de vários deles ao jogo político convencional. (Aliás,
pode-se supor que, não fosse a proscrição de 1947, teria sido este o percurso
do PCB, com grandes vantagens para a higidez do sistema partidário vigente até
1964. Sobre especulações desse tipo, porém, cabe ter a cautela de praxe.)
Estando o PT vocacionado a estratégias
sociais reformistas, de que um programa bem-sucedido como o Bolsa Família é uma
amostra, a retórica petista nem sempre acompanhou essa vocação. Em política, a
linguagem conta, e muito. Ela nunca é inocente e contribui para moldar, em
adeptos e militantes, a compreensão das coisas e o próprio comportamento. Nada
mais nocivo, nesse sentido, do que a adoção de lemas equívocos, como o “nós
contra eles”, “o povo contra as elites”, sinais da praga nacional-populista que
corrói democracias liberais até mais consolidadas do que a nossa. Uma esquerda
moderna digna do nome deveria combater a praga, desviando-se de tal léxico e assumindo
seu posto na trincheira das democracias realmente existentes.
Rarefeito o centro, cumpre restaurá-lo a
partir da esquerda, cujos partidos mais expressivos, como PT e PSB, têm uma
função nacional a realizar, mais além dos seus interesses imediatos. A agregação
de quadros e partidos moderados terá sentido estratégico, e não apenas
simbólico. Uma agregação, de resto, que respeite a integridade dos aliados, sem
a tentação de cooptá-los total ou parcialmente. Em contextos como o atual, a
força dirigente precisa observar – conforme a lição clássica – uma altíssima
consciência do próprio papel e, também, do papel dos aliados, de modo que
mobilize articuladamente a capacidade de todos e solape o consenso dos
extremistas, enfraquecendo-os como fator real de poder.
Sob vários aspectos, as tarefas aqui
descritas foram equacionadas no árduo período da resistência capitaneada pelo
MDB de Ulysses. Sob outros, pisamos em terreno novo e cheio de armadilhas,
algumas das quais decorrentes de limites da própria esquerda. Desarmá-las, e
pacificar o País, representará um feito histórico, com a inevitável ressalva de
que, antes, como agora, não há margem para emoções desencontradas.
*Tradutor e ensaísta, é um dos
organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
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