Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Já se difundiu na sociedade inteira a
pergunta “haverá golpe?” ou, para os conformistas, “vai ter golpe”
Desde a posse do presidente da República,
ele próprio e membros de seu governo, com alguma frequência, agitam as águas da
política brasileira para turvá-las e nelas pescar de modo politicamente
impróprio.
Por trás desses procedimentos está uma
compreensão do processo político que não é deles, nem têm eles demonstrado ter
o discernimento que lhes permita saber o que estão fazendo. Embora gostem do
que fazem. Sabem de uma coisa: foram eficazes as manipulações extraeleitorais
das eleições de 2018, a falsa defesa dos costumes, o falso fortalecimento da
segurança. Candidatos evangélicos e candidatos fardados foram beneficiados por
essas máscaras ideológicas.
Tudo foi e tem sido instrumento de uma
cultura de suspeição que torna fácil, na campanha eleitoral, manipular
consciências e colocar entre parênteses a consciência crítica e democrática do
eleitor para induzi-lo a votar em quem normalmente não votaria. Desde a
ruinzinha cinematografia americana da Guerra Fria, o mundo por ela influenciado
tem sido induzido a temer fantasmas ideológicos para eleger quem supostamente
os combate.
Em dias passados, a colunista Malu Gaspar divulgou no jornal “O Globo” que o general Braga Netto, candidato provável a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, em encontro com empresários da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, teria dito que não haverá eleição se não for feita a auditoria dos votos defendida pelo mandatário da República. Foi ouvido em silêncio. A assessoria de imprensa do general esclareceu que não houve ameaça e que a fala foi tirada de contexto.
No entanto, afirmações como essa, de
ameaças às instituições e ao processo democrático, têm sido feitas, logo
cercadas de interpretações e correções que desdizem o já dito. Desmentidos não
têm o poder de desfazer os efeitos subjetivos da mensagem já enviada. Eles
apenas criam incerteza quanto à afirmação original e primária do disseminador
de uma afirmação perturbadora.
A fala de campanha do general não está
isolada. Repete Bolsonaro de meses atrás. Portanto, a frágil incerteza do
desmentido de agora alenta a desconfiança de que está em andamento um processo
de gestação da dúvida quanto à eleição.
O que tem sido interpretado de que estamos
em face de preparação de um golpe de Estado e que o golpe tem o aval das Forças
Armadas. Sabemos que institucionalmente isso não pode ocorrer. E sabemos que
autores de golpe são candidatos a processo e prisão.
Esse tipo de conduta destina-se a
naturalizar a possibilidade do golpe. Já se difundiu na sociedade inteira a
pergunta “haverá golpe?” ou, para os conformistas, “vai ter golpe”.
De certo modo, está se preparando um
substrato de consciência política e eleitoral destinado a frustrar os eleitores
se não houver golpe. Ou seja, trata-se de uma técnica de manipulação da opinião
eleitoral de modo a envenenar a legitimidade do processo político no caso,
nesta altura muito provável, de que um candidato de oposição vença a eleição.
Um filho do presidente, na esteira desse
jogo, declarou que não sabe como os eleitores de Bolsonaro reagirão no caso
dele não vencer as eleições. Nos países normais, as pessoas normais sabem o que
acontece com os que perdem eleição: vão para casa ou, quem não está acostumado
a trabalhar, vai procurar emprego.
Diferentemente do que ocorreu em todas as
eleições anteriores à de 2018, o bolsonarismo empenha-se em criar a anomalia
política de que aquela eleição não foi para confirmar a natureza democrática do
processo eleitoral, com a alternação doutrinária e ideológica dos governantes,
mas para pôr-lhe fim. O eleitorado teria votado no sentido de instituir uma
ditadura. O que não é estranho.
A vocação totalitária de uma parte do
eleitorado brasileiro é antiga. Foi difundida nas revoltas tenentistas. Num
documento dos militares revoltosos de 1924, em São Paulo, há um programa de
reproclamação da República após o governo de Floriano Peixoto, usurpada e
aparelhada pelas oligarquias dos “coronéis” de roça. Basicamente uma ditadura
para educar os brasileiros à conduta própria de um regime político
antirrepublicano, nascido nos quartéis.
A realidade mostrou que isso era
impossível. A ditadura de 1964 teve que conciliar com as oligarquias,
especialmente suas facções de bajuladores, os que trocam favor por voto, por
verbas de orçamento secreto, como se viu agora, o país reduzido a uma
republiqueta na pressuposição de que democracia é a do bando de eleitores com
mentalidade carneiril. Costa e Silva, ministro da Guerra do governo de Castelo
Branco, chegou a dizer na TV que não conseguia entender os civis. No quartel,
ele dava uma ordem, e a ordem era cumprida. No governo, não.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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