sábado, 6 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Cartas reafirmam compromisso com Brasil democrático

O Globo

Texto com adesão do setor produtivo e sociedade civil mostra que o país não tolerará arroubo golpista de Bolsonaro

É histórica a carta em defesa da democracia e da Justiça publicada ontem pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), com a adesão de dezenas de entidades representativas do setor produtivo, centrais sindicais e organizações da sociedade civil. Ela se soma à manifestação dos mais de 750 mil signatários da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, lançada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo com base na Carta aos Brasileiros lida pelo jurista Goffredo da Silva Telles nas arcadas do Largo São Francisco em 1977, marco do início da derrocada da ditadura militar.

Os textos são praticamente idênticos na essência: reafirmam o apoio veemente à democracia e ao sistema eleitorial e repudiam os ataques sem fundamento às urnas eletrônicas promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro e por seus partidários. Revelam que a sociedade brasileira não aceitará qualquer tentativa de desrespeito ao resultado proclamado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na eleição de outubro. São parte de uma reação bem-vinda e necessária da sociedade para deter os arroubos golpistas de Bolsonaro.

Como o texto anterior, o da Fiesp também destaca o papel do Judiciário na preservação do regime democrático. Em especial, do Supremo Tribunal Federal (STF) — “guardião último da Constituição” — e do TSE, por ter “conduzido com plena segurança, eficiência e integridade nossas eleições respeitadas internacionalmente”. Também como a anterior, a carta não cita Bolsonaro explicitamente. Nem era necessário. É óbvio o contexto político que a motivou: a campanha mentirosa promovida pelo bolsonarismo contra STF, TSE e urnas eletrônicas.

Não se deve subestimar a coragem dos órgãos representativos do setor produtivo para confrontar um presidente de personalidade autoritária e histórico vingativo. A sociedade civil e integrantes do governo genuinamente comprometidos com o Brasil devem se manter atentos às eventuais tentativas de constrangimento com o uso da máquina estatal. Bolsonaro já xingou de “sem caráter” os signatários da carta da São Francisco. Bolsonaristas chegaram a pedir boicote às empresas cujos acionistas assinaram o texto. Simplesmente por defenderem a democracia.

Desde que os brasileiros reconquistaram o direito de eleger o presidente pelo voto direto, o país escolheu mandatários com administrações relativamente boas, medianas ou terríveis. A democracia não garante a eleição dos melhores candidatos. O que ela assegura é a resolução pacífica das divergências e o direito dos eleitores a fazer novas escolhas periodicamente. É esse precioso conceito — o poder a emanar do povo — que agora está sob ataque com a campanha de Bolsonaro para desacreditar o processo eleitoral e suas ameaças de não reconhecer o resultado das urnas.

O comportamento do presidente e de seus apoiadores em caso de derrota em outubro é uma incógnita. Uma das poucas certezas quanto ao futuro é que os brasileiros — entre eles os signatários de ambas as cartas — não abrirão mão da democracia.

Congresso acerta ao aprovar lei que regulamenta o trabalho híbrido

O Globo

A atualização da legislação era necessária após as recentes transformações que vieram para ficar

Foi positiva a aprovação na Câmara dos Deputados e no Senado da Medida Provisória que permite às empresas decidir as regras para trabalho remoto em negociação com os funcionários, sem a necessidade de acordo ou convenção coletiva. As mudanças na lei acabaram com o vácuo em que se encontrava o trabalho híbrido. A legislação cobria com detalhes apenas as modalidades estanques: presencial e remota. “Como nos mostrou o longo período da pandemia, o híbrido é uma modalidade que veio para ficar e precisava estar na lei de forma clara”, diz José Pastore, um dos maiores especialistas brasileiros em relações do trabalho.

Até o começo de 2020, a modalidade híbrida ou remota era adotada por segmentos minúsculos do mercado formal. É verdade que já se falava na popularização das duas práticas, mas a discussão se restringia às apresentações de consultores ou palestras voltadas para o futuro do mundo do trabalho. Veio a Covid-19 e tudo entrou em alta velocidade, principalmente, mas não só, entre trabalhadores de maior renda. Por isso fez bem o Congresso ao aprovar a atualização da legislação.

A lei também deu um passo importante ao incluir autônomos, estagiários e aprendizes entre os que podem realizar atividades remotamente. Não fazia sentido excluir profissionais que trabalham por tarefas ou jovens que ensaiam os primeiros passos na vida profissional. Outro ponto positivo foi esclarecer uma questão em aberto: o funcionário contratado numa cidade que trabalha num longo projeto noutra deveria seguir qual convenção coletiva? A lei definiu: a do local onde é registrado.

O destaque negativo é a exigência de anotação da jornada para funcionários registrados que estejam no formato remoto — apenas os autônomos foram eximidos. Em vez de manter o foco no trabalho realizado, cria-se mais uma burocracia que todos terão de cumprir.

Nos debates, dois temas despertaram controvérsia. O de menor importância foi o auxílio-alimentação. Entre os congressistas, havia quem defendesse o pagamento em dinheiro. Caso a proposta tivesse prevalecido, teria sido uma contradição com o objetivo original do benefício: a alimentação. Ao fim, os parlamentares chegaram a um meio-termo e permitiram o saque em dinheiro dos recursos do vale-refeição que não forem usados em 60 dias.

Mais relevante foi a discussão sobre a necessidade de negociação coletiva para definir as regras do trabalho remoto. Deputados ligados ao movimento sindical não pouparam críticas à ideia do contrato individual. Argumentos vazios usados em outros embates sobre as leis trabalhistas foram repetidos à exaustão. Não faltaram declarações sobre o pretenso “retrocesso” para os trabalhadores.

Foi feliz o vice-líder do governo na Câmara, o deputado Sanderson (PL-RS), ao dizer que o sindicato “muitas vezes não representa a vontade específica de cada um dos trabalhadores”. Exigir a chancela sindical teria sido uma maneira de tumultuar algo que pode ser decidido de modo mais eficaz entre empresas e empregados. Existem leis para coibir eventuais excessos.

A democracia une profundamente o País

O Estado de S. Paulo

Manifesto reúne adversários históricos, como Fiesp, CUT e UNE. O País supera divergências e consegue dialogar quando há algo valioso em comum a defender

Jair Bolsonaro pode tentar qualificar de partidário o manifesto Em defesa da democracia e da Justiça, da mesma forma como já havia feito com a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. Os fatos, no entanto, o desmentem de uma forma constrangedora: inimigos históricos, que sempre tiveram e continuam a ter posições ideológicas opostas, assinaram juntos o novo manifesto em defesa das eleições e do Judiciário. Ao lado da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), estão entidades como Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Nacional dos Estudantes (UNE), União Geral dos Trabalhadores (UGT) e Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Entre os signatários do manifesto, deve-se destacar também a presença de entidades históricas, de longuíssima tradição de apartidarismo político, como o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), cuja fundação antecede a própria proclamação da República.

Essa miríade de entidades juntas revela que, mesmo num ambiente político marcado pela polarização, a defesa da democracia é um consenso civilizatório inegociável. Com sua campanha golpista, Jair Bolsonaro fez despertar uma impressionante reação, plural e apartidária, em defesa do regime democrático. Ao contrário do que o discurso bolsonarista apregoa, a defesa da democracia não é uma causa partidária. Ela une profundamente o País.

A presença da Fiesp, Febraban, CUT, UNE e muitas outras entidades no mesmo manifesto revela também outro aspecto fundamental da democracia brasileira. Há muitas diferenças e embates no dia a dia da política. Basta perguntar como cada uma dessas entidades vê as reformas previdenciária e trabalhista. No entanto, mesmo com todas as discordâncias, o diálogo é possível. Na hora de defender a democracia, as entidades foram capazes de agregar esforços, sem titubear, em prol de um mesmo ideal.

O manifesto Em defesa da democracia e da Justiça também explicita uma dimensão importante da campanha de Jair Bolsonaro contra o regime democrático. O presidente da República ataca a democracia brasileira não apenas quando coloca em dúvida, sem nenhuma prova, a lisura do processo eleitoral, mas também quando ameaça e confronta o Poder Judiciário.

De forma corajosa, o manifesto destaca “o papel do Judiciário brasileiro, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), guardião último da Constituição, e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem conduzido com plena segurança, eficiência e integridade nossas eleições respeitadas internacionalmente, e de todos os magistrados, reconhecendo o seu inestimável papel, ao longo de nossa história, como poder pacificador de desacordos e instância de proteção dos direitos fundamentais”. A independência do Poder Judiciário é elemento fundamental do Estado Democrático de Direito. Depois de três anos e meio de ataques e desinformação do bolsonarismo contra o STF e o TSE, é muito oportuno que a sociedade civil expresse, de forma plural e apartidária, incondicional apoio ao Judiciário. A mensagem é contundente: em seu enfrentamento contra o Supremo, Jair Bolsonaro também está isolado.

Aos que se empenham em não ver o caráter apartidário dos manifestos em defesa das eleições e do Judiciário, o presidente da Fiesp, Josué Gomes, desenhou. “É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito”, disse Josué Gomes ao jornal Folha de S.Paulo. Como afirma o manifesto organizado pela Fiesp, “a estabilidade democrática, o respeito ao Estado de Direito e o desenvolvimento são condições indispensáveis para o Brasil superar os seus principais desafios”, e por isso “esse é o sentido maior do 7 de Setembro neste ano”. Unida, a Nação brasileira não deixará Jair Bolsonaro destruir a democracia e a independência do País.

O Brasil diante da inflação mundial

O Estado de S. Paulo

Por várias razões, desajuste de preços espalha-se por dezenas de países avançados e emergentes, e inflação de dois dígitos deixa de ser raridade, tornando-se fenômeno internacional

Com inflação de 11,9% nos 12 meses até junho, o Brasil tem agora a companhia de nações avançadas e emergentes também assoladas pela alta de preços em dois dígitos. O aumento anual do custo de vida chegou a 10,3%, em média, nos 38 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O desarranjo foi causado principalmente pelo aumento global dos preços da alimentação e da energia. Ainda marcado pelos efeitos econômicos da pandemia, o mercado internacional tem sido afetado também pela guerra na Ucrânia, grande exportadora de grãos. Mas o surto inflacionário é em parte explicável pelo afrouxamento das políticas fiscais em 2020 e 2021, na tentativa inicial de estimular a recuperação das atividades deprimidas na crise sanitária. Disseminados por todos os continentes, os danos da inflação se distribuem, no entanto, de forma desigual, atingindo mais duramente as populações mais pobres.

A onda inflacionária é a maior registrada pela OCDE desde junho de 1988. Os preços ao consumidor subiram 10% ou mais, em 12 meses, em 13 países da organização, cerca de um terço do total. Com inflação de 78,6% nesse período, a Turquia exibiu um desajuste muito maior que o dos demais membros da entidade.

Em outros 13, incluídos a Bélgica (9,6%), o Reino Unido (8,2%) e os Estados Unidos (9,1%), a alta de preços ficou na faixa de 8% a 10%, com números dificilmente imagináveis, em outras condições, na maior parte do mundo capitalista. O Japão, como sempre, ficou longe do ritmo inflacionário internacional, com alta de preços de 2,4%, já um tanto elevada para os padrões japoneses.

No Grupo dos 20 (G-20), o maior desarranjo foi exibido, como tem ocorrido há vários anos, pela Argentina, com inflação anual de 64%. O Brasil ficou em segundo lugar, com 11,9% de variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A África do Sul ocupou o terceiro lugar, com 7,4%.

O custo da energia, um dos itens principais da pauta eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, subiu 40,7%, em média, nos países da OCDE e 42% na zona do euro, enquanto a alimentação, nas duas áreas, encareceu 13,3% e 10,4%. No Brasil, as tarifas de energia elétrica residencial aumentaram 2,16% nesse período; os preços de combustíveis para veículos, 26,47%; e os de alimentos, 13,93%.

Para a maior parte dos brasileiros os danos foram muito maiores, obviamente, do que para os moradores de países desenvolvidos e de vários emergentes, por causa das condições de emprego e das dimensões da pobreza. Não basta comparar taxas de inflação. Para uma visão razoavelmente realista é preciso levar em conta a distribuição dos ganhos, muito mais desigual no Brasil do que em muitas outras economias avançadas e de renda média. Mesmo com dados nacionais é fácil perceber como a alta de preços afeta de forma diferenciada os vários estratos econômicos. Isso é mostrado regularmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em suas tabelas de inflação por faixa de renda.

Confrontados com preços em alta acelerada, bancos centrais de vários países, incluído o Brasil, tentam conter o surto elevando os juros e dificultando a expansão do crédito. Essa política tende a reduzir o ritmo de negócios, com prejuízos para a criação de empregos e para as condições de vida de milhões de famílias. Entre as medidas iniciais de ajuste e seus primeiros efeitos benéficos, multidões enfrentam o duplo desafio de suportar uma inflação em queda apenas gradual e sobreviver numa economia menos dinâmica. O risco de recessão torna mais sombrio o período de ajuste dos preços.

Para o governo brasileiro, a inflação mundial tem servido como justificativa para os desajustes internos, embora os desarranjos nacionais sejam explicáveis principalmente por desmandos cometidos em Brasília, como a gastança eleitoreira, a política econômica sem rumo, a insegurança dos investidores e a consequente sobrevalorização do dólar. Qualquer problema originário de fora apenas complicará um quadro doméstico já pouco animador.

Dívida em troca de voto

O Estado de S. Paulo

Endividamento das famílias e saques da poupança batem recorde, mas o governo estimula os pobres a se endividar mais

Os saques recorde das cadernetas – de R$ 12,662 bilhões em julho e de R$ 50,5 bilhões no primeiro semestre, os maiores valores para o período desde 1995, quando o Banco Central começou a divulgar esses dados – resultam de uma combinação de fatores, mas têm muito a ver particularmente com as crescentes dificuldades da população para cobrir seus gastos e cumprir no prazo seus compromissos financeiros. É certo que a alta da inflação e da taxa Selic, que corrói o rendimento real e a competitividade dessa modalidade de aplicação, desestimula a manutenção de dinheiro na poupança. Mas é certo também que muitos depositantes estão sacando parte de seu dinheiro não para comprar bens ou contratar serviços nem para investir em algo mais rentável, e sim para pagar dívidas vencidas.

O endividamento das famílias está no nível mais alto desde 2005, de acordo com relatório do Banco Central. E o número de pessoas com contas atrasadas está batendo recordes, tendo alcançado 66,8 milhões de cidadãos em junho, conforme levantamento da Serasa Experian.

É nesse cenário pouco animador da situação financeira da população que o governo do presidente Jair Bolsonaro cria facilidades para que beneficiários de programas sociais tomem empréstimos de maior valor lastreados nos benefícios. De repente, um governo que nunca pensou em programas eficientes e de longo prazo para a parcela mais carente da população mostra interesse pelos pobres.

O interesse é falso. O objetivo de Bolsonaro é apenas o de tentar conquistar votos dessa parcela da população, cuja preferência eleitoral predominante, como mostram pesquisas recentes, não é por ele, mas por seu principal adversário na disputa pela Presidência da República em outubro.

O governo estendeu para os beneficiários do Auxílio Brasil e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) a possibilidade de tomar empréstimo consignado com base no valor dos benefícios. Também aumentou o limite de comprometimento do valor de pensões e aposentadorias para tomar o mesmo tipo de empréstimo.

Aparentemente favorável aos beneficiários, pois em tese amplia sua possibilidade de utilizar financiamentos para aumentar temporariamente sua capacidade de consumo, a medida pode tornar-se danosa para eles. A cautela com que as principais instituições financeiras analisam a oportunidade e o volume da oferta dessa nova modalidade de crédito é indicação de sua preocupação com o aumento do endividamento de uma parcela da população financeiramente mais frágil num momento de incertezas na economia.

Embora o consignado seja uma modalidade de crédito teoricamente mais barata, pois tem garantia forte, para os beneficiários do Auxílio Brasil seu custo pode ser alto, pois o governo não fixou limites para os juros da operação. No caso de aposentados e pensionistas, a possibilidade de utilização de 45% do benefício para a contratação do consignado pode ser encantadora, mas implicará o comprometimento de quase metade de sua receita apenas com essa operação. Como pagará suas outras despesas? Ao governo Bolsonaro, essa questão não parece importar. 

Sentenças em xeque

Folha de S. Paulo

Ao examinar efeitos da nova Lei de Improbidade, STF deve buscar critérios para evitar anistia irrestrita

Em julgamento iniciado na última quarta (3), os ministros do Supremo Tribunal Federal começaram a definir o alcance dos benefícios que o Congresso criou no ano passado ao reformar a Lei de Improbidade Administrativa, instrumento usado desde 1992 para punir políticos e servidores públicos desonestos.

A principal mudança introduzida na legislação pelos parlamentares foi a exigência, para configuração da improbidade, de comprovação de dolo, ou seja, a intenção de lesar a administração pública.

Com isso, erros dos gestores e mesmo demonstrações de negligência ficaram livres das sanções previstas na lei, que incluem a perda do cargo e dos direitos políticos e a reparação de danos ao erário.

Tais correções foram bem-vindas, uma vez que direcionam a atenção das autoridades para casos mais graves de corrupção e reduzem a insegurança que a antiga lei criava, por ser muito genérica.

Além disso, o novo estatuto impôs prazo para que processos de improbidade sejam concluídos mais celeremente, em até dois anos, e reduziu os períodos estabelecidos para prescrição das ações.

A dúvida que permaneceu é se os acusados sob a vigência das regras anteriores poderiam ser favorecidos pelas mudanças legislativas, com a aplicação retroativa dos novos dispositivos, em geral mais benéficos para os réus das ações.

Primeiro a votar no julgamento, por ser relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes propôs que a nova lei seja aplicada retroativamente somente nos processos que ainda estão em curso e se não houver dolo, a depender da apreciação feita pelos juízes em cada situação.

Se a opinião de Moraes prevalecer ao final do julgamento, nada mudará nos processos com condenação definitiva e pena em execução, assim como nos casos com dolo comprovado, e portanto mais graves.

Segundo a votar, o ministro André Mendonça opinou pela retroatividade da lei mais benéfica em qualquer caso, mesmo se houver decisão definitiva. Nessas situações, disse, as condenações poderiam ser revistas por ações rescisórias.

O voto vai de encontro às aspirações de políticos condenados por improbidade no passado e que recorreram à nova lei para tentar se livrar dos processos e poder concorrer às eleições de outubro.

O caso mais notório é o do deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Condenado por desvios da época em que era deputado estadual em Alagoas, ele tenta até hoje reverter as sentenças.

Caberá ao STF encontrar a modulação adequada para o tratamento do problema com a retomada do julgamento, na próxima semana. Se a lei assegura o benefício aos réus como princípio, é preciso evitar o vale-tudo de uma anistia irrestrita.

Jô Soares

Folha de S. Paulo

Multiartista soube unir a comédia de costumes e a crítica política para divertir e fazer o Brasil pensar

"Seu talento é tão vasto quanto sua circunferência", disse certa vez o crítico de teatro Décio de Almeida Prado sobre José Eugênio Soares, o Jô, cuja morte nesta sexta (5), aos 84 anos, entristece o Brasil.

A brincadeira com o tipo físico era endossada, como se sabe, pelo próprio artista, numa atitude de autoironia que sublinhava seu senso de humor sofisticado e irresistível.

Do teatro ao cinema, passando pela literatura, pelas artes plásticas e pela crônica jornalística, Jô Soares se projetou durante um ciclo marcante da história brasileira, que vai do final da década de 1950 à redemocratização dos anos 1980.

Do Brasil das chanchadas, da bossa nova, de Pelé e da construção de Brasília até o Brasil que lutou para se reconciliar com suas aspirações democráticas após os anos difíceis da ditadura militar.

Ao longo desse período, a televisão absorveu parte da tradição dos programas de rádio e do teatro e adquiriu inédito protagonismo no campo da comunicação social.

Na vida cotidiana, sobretudo por meio das novelas, dos programas musicais e dos humorísticos, a TV funcionou como uma espécie de arena comunitária, ponto de encontro no qual se encenava uma determinada sociabilidade brasileira —com sua graça, suas crueldades e seus conflitos.

Jô Soares, assim como seu brilhante colega Chico Anysio (1931-2012), teve papel relevante na criação de uma afiada galeria de tipos que, com bordões e características variadas, divertiam gente de todas as classes e grupos sociais.

Em seus programas, a crítica de costumes e a crítica política caminhavam juntas, muitas vezes driblando restrições, estabelecendo um padrão de humor a um só tempo popular e refinado, que talvez não tenha encontrado herdeiros.

O multiartista se notabilizou, ainda, por ser um pioneiro do talk show no Brasil, gênero que importou da televisão americana e transformou em enorme sucesso, após ter abandonado a carreira de humorista. Também suas entrevistas, que marcaram época, reuniam um vasto mosaico de interesses e personagens.

Os contornos daquele país em que Jô Soares brilhou já se dissolviam muito antes de sua morte, nesses tempos de novos desencontros, novas demandas e novos embates. Sua contribuição, contudo, para o entretenimento, o diálogo e a cultura no Brasil permanecerá viva com o amplo reconhecimento que fez por merecer.

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