Correio Braziliense
1964 serve de exemplo para o governo Lula, que
precisa adotar um programa democrático, porém, mais modesto do ponto de vista
das reformas
O mais ambicioso programa de reformas de
estrutura da história do Brasil foi o do presidente João Goulart (1961-1964),
que havia assumido governo no lugar de Jânio Quadros, em meio a uma tentativa
de golpe e graças a uma solução de compromisso: a adoção do parlamentarismo. Em
razão das nossas desigualdades, no seu governo havia um cenário de
radicalização político-ideológica e intensificação dos conflitos sociais.
Jango, como era chamado, sofria fortes pressões do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), principalmente de seu cunhado, Leonel Brizola, e de outras lideranças de esquerda, como o líder comunista Luís Carlos Prestes e Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para realizar reformas estruturais na sociedade, entre as quais a agrária. Com a volta do presidencialismo, decidida por um plebiscito em 1963, Jango se sentiu fortalecido para levar adiante o projeto nacional-desenvolvimentista da esquerda brasileira.
As chamadas Reformas de Base abarcavam um
conjunto amplo de problemas: a questão agrária, o sistema financeiro, a crise
fiscal, a urbanização acelerada, o atraso burocrático e o acesso às
universidades. O principal objetivo delas era combater a concentração de
propriedade e de renda, além de ampliar a participação política da sociedade.
Para isso, era preciso mudar a Constituição de 1946, o que exigia maioria ampla
no Congresso. Pela legislação, o governo indenizaria os proprietários de terra,
em caso de desapropriação, com dinheiro em espécie, mas Jango queria fazê-lo
com títulos públicos e a longo prazo.
Jango também pretendia criar condições para
os inquilinos comprar as residências que alugavam com títulos públicos. Também
pretendia limitar a remessa de lucros ao exterior, estatizar alguns setores
econômicos e expandir a Petrobras. Além disso, estava aceitando a pressão de
militares de baixa patente para aumentar a sua representação política
concorrendo a cargos eletivos, como os de vereadores e deputados.
Nada disso significava uma mudança de
regime político, uma opção pelo socialismo. Mas assim passou a ser visto pela
maioria da sociedade, após intensa campanha da oposição, liderada pelo
governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, o principal líder da UDN à
época, que era candidato a presidente da República. No início de 1964, Jango
perdeu o apoio do PSD (Partido Social Democrático), de Juscelino Kubitschek,
que sonhava com a volta à Presidência nas eleições previstas para 1965. Brizola
pretendia ser candidato, mesmo estando inelegível por ser cunhado do presidente
da República, e Prestes articulava a reeleição de Jango nos bastidores.
O Congresso, de maioria conservadora,
rejeitou as reformas de base. Jango resolveu mobilizar os trabalhadores urbanos
e rurais para respaldar a adoção das reformas por decreto presidencial. No dia
13 de março de 1964, o chamado comício da Central do Brasil, reuniu cerca de
150 mil pessoas. Nele, Jango anunciou que decretaria as Reformas de Base, à
revelia do Congresso.
Moral da história
A reação conservadora foi imediata:
convocada por forças políticas e religiosas de direita, a Marcha da Família com
Deus pela Liberdade, na cidade de São Paulo, em 19 de março de 1964, reuniu
quase 500 mil pessoas. Outras manifestações se realizaram no interior paulista
e em outros estados. Em 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado,
depôs Jango e deu início a 20 anos de ditadura.
No dia 2 de abril, no Rio de Janeiro,
realizou-se a Marcha da Vitória. Não foram apenas o ambiente de guerra fria e a
quebra de hierarquia nas Forças Armadas que viabilizaram golpe. As marchas
conservadoras demonstraram que o golpe também era vitorioso na sociedade.
Qual é a moral da história? Darcy Ribeiro
dizia que foi melhor ser derrotado do lado certo, pois as reformas eram
necessárias. E eram mesmo, tanto que a maioria foi feita pelos militares,
durante a ditadura, como o Estatuto da Terra, a estatização de empresas de
infraestrutura e expansão da Petrobras, a reforma bancária e fiscal, a expansão
das universidades. Alguns chamam esse processo de modernização pelo alto de
“revolução passiva”, outros de “autoritarismo funcional”. Os militares que
apoiaram o governo Bolsonaro sonhavam — e ainda sonham — com a ressignificação
do regime militar.
O governo Jango pôs o carro à frente dos
bois, ao tentar fazer as reformas de base na marra, sem aprovação do Congresso.
Além disso, a esquerda considerava um retrocesso a volta de JK ao poder, o
favorito nas eleições marcadas para 1965. Para se manter no poder, defendia a
candidatura de Brizola, inelegível por ser cunhado do presidente da República,
ou até mesmo a reeleição de Jango.
1964 serve de exemplo para o governo Lula,
que precisa adotar um programa democrático, porém, mais modesto do ponto de
vista das reformas. É mais exequível focar o programa de governo na gestão
ambiental e nos direitos básicos e universais da população (saúde, educação,
trabalho, moradia, transporte e segurança pública). É o caminho para construir
uma ampla maioria no Congresso e, ao mesmo tempo, corresponder à expectativa de
seus eleitores, que hoje se resume a trabalho e renda, além do respeito aos
direitos humanos e o combate ao racismo estrutural.
3 comentários:
Perfeito
Azedo e a reinvenção da roda política
Combate ao racismo estrutural e à homofobia,sem agressividade,apenas com diálogo e aplicação das leis.
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