O Estado de S. Paulo
O que devemos fazer para que, ao final do ano, possamos dizer muito honestamente: fizemos tudo o que podíamos fazer?
Uma das consequências fortes do Estado
Democrático de Direito é o respeito à liberdade, com um corolário bem
específico, o princípio da legalidade. “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, diz a Constituição. Dentro dos
limites da lei, cada um vive como bem lhe aprouver, sem que ninguém possa
recriminá-lo por suas escolhas. A dupla proposta deste artigo – não nos
conformarmos com o que já fazemos pela coletividade e questionarmo-nos
periodicamente sobre como podemos fazer mais – não é, portanto, nenhum juízo
sobre o comportamento alheio. É simplesmente uma reflexão compartilhada, uma
provocação.
No livro Minha História (2018), Michelle Obama narra uma inquietação que me parece admirável, exemplar. “Eu estava com 32 anos (...). Em nossos encontros no Zinfandel (um restaurante de Chicago), muitas vezes Barack e eu retomávamos a conversa que, de uma ou outra forma, mantínhamos por anos – como e onde cada um de nós poderia exercer impacto, fazer a diferença, qual seria a melhor maneira de empregar nosso tempo e nossas energias”.
Essa inquietação vital permanente – qual é
a melhor maneira de empregar nosso tempo e nossas energias? – diz respeito não
apenas à realização pessoal e familiar, mas ao desenvolvimento da sociedade, em
suas várias dimensões. Uma população que se sente confortável com o que já faz
pelos outros não progride. É uma coletividade acomodada.
Não podemos nos conformar com o que já
fazemos pela sociedade. Não é apenas uma questão de quantidade, ainda que isso
naturalmente tenha sua importância: quanto tempo, dinheiro e energia investimos
em projetos de interesse coletivo? O ponto é outro. Trata-se de questionar
sobre a qualidade da nossa dedicação e dos efeitos produzidos: se a nossa
contribuição à sociedade está informada pelas melhores práticas, se estamos
conseguindo contribuir com nossas melhores aptidões, se estamos enfrentando as
causas dos problemas, se nossa ajuda é estímulo à autonomia ou à dependência.
Sendo tão decisiva para o enfrentamento das
injustiças e desigualdades sociais, a disposição pessoal de contribuir com o
coletivo merece ser mais difundida, mais promovida, mais ensinada às novas
gerações. É possível fazer muito mais, em todas as idades e em todas as
situações de vida.
Não é uma utopia. Peço licença para
mencionar uma memória de infância, convicto de que cada um tem também exemplos
similares a mencionar sobre sua própria família. Cresci vendo meus avós
maternos, Celina e Orlando Travancas, participarem ativa e constantemente do
Banco da Providência, organização beneficente carioca fundada por dom Hélder
Câmara, que realiza a Feira da Providência, cujo lema (exposto nos memoráveis
cartazes de Ziraldo) é, precisamente: ninguém é tão pobre que não tenha nada
para dar nem tão rico que não precise de nada.
Neste início de ano, pode ser oportuno
questionarmo-nos. Onde investimos nosso tempo livre? Como podemos fazer mais?
Como podemos transformar e melhorar a realidade social, política e econômica à
nossa volta? Como podemos retribuir o muito que recebemos? O que devemos fazer
para que, ao final do ano, possamos dizer muito honestamente para nós mesmos:
fizemos tudo o que podíamos fazer, fizemos tudo o que éramos capazes de fazer?
Nos tempos atuais, há uma grande
preocupação com a saúde mental. Entre outros aspectos, destaca-se o cuidado
para que não nos exijamos demais, para que não sejamos muito duros com nós
próprios. Há uma nova proposta de percepção sobre nossas capacidades e
limitações, numa perspectiva de aceitação serena dos nossos limites. Tudo isso
é muito positivo. De fato, todos temos um longo caminho de aprendizagem no
respeito ao nosso possível, que é único e diferente de todos os demais.
Preocupações imaginárias e comparações com outras trajetórias de vida podem ser
sufocantes e contraproducentes. No entanto, nada disso nos pode privar de nos
perguntarmos, de forma muito sincera: será que não estamos sendo muito
condescendentes com nós próprios? Não podemos fazer mais ou, na verdade, o que não
podemos, para nossa própria saúde mental, é continuar fazendo tão pouco? O que
chamamos frequentemente de cansaço (como desculpa para não fazermos mais) não
é, na realidade, um desânimo por fazermos tão aquém das nossas possibilidades?
Há muito a fazer, a transformar, a
construir, a manter, a fortalecer. Há muitas boas iniciativas em funcionamento
precisando de braços. Há muitas carências necessitando de atenção. Além disso,
a inquietação por servir mais à coletividade não é necessariamente um questionamento
sobre mudar de atividade, incorporar novos projetos ou assumir novas
obrigações. É também, de forma muito prática, avaliarmos e aperfeiçoarmos o
modo como realizamos o nosso trabalho profissional. Todas as profissões têm uma
profunda dimensão de serviço à coletividade. Sendo a atividade a que
habitualmente dedicamos mais tempo, é em nossa profissão – no cuidado com que a
realizamos – em que muitas vezes podemos deixar nossa melhor contribuição.
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