quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti - A aventura de não olhar só para si

O Estado de S. Paulo

O que devemos fazer para que, ao final do ano, possamos dizer muito honestamente: fizemos tudo o que podíamos fazer?

Uma das consequências fortes do Estado Democrático de Direito é o respeito à liberdade, com um corolário bem específico, o princípio da legalidade. “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, diz a Constituição. Dentro dos limites da lei, cada um vive como bem lhe aprouver, sem que ninguém possa recriminá-lo por suas escolhas. A dupla proposta deste artigo – não nos conformarmos com o que já fazemos pela coletividade e questionarmo-nos periodicamente sobre como podemos fazer mais – não é, portanto, nenhum juízo sobre o comportamento alheio. É simplesmente uma reflexão compartilhada, uma provocação.

No livro Minha História (2018), Michelle Obama narra uma inquietação que me parece admirável, exemplar. “Eu estava com 32 anos (...). Em nossos encontros no Zinfandel (um restaurante de Chicago), muitas vezes Barack e eu retomávamos a conversa que, de uma ou outra forma, mantínhamos por anos – como e onde cada um de nós poderia exercer impacto, fazer a diferença, qual seria a melhor maneira de empregar nosso tempo e nossas energias”.

Essa inquietação vital permanente – qual é a melhor maneira de empregar nosso tempo e nossas energias? – diz respeito não apenas à realização pessoal e familiar, mas ao desenvolvimento da sociedade, em suas várias dimensões. Uma população que se sente confortável com o que já faz pelos outros não progride. É uma coletividade acomodada.

Não podemos nos conformar com o que já fazemos pela sociedade. Não é apenas uma questão de quantidade, ainda que isso naturalmente tenha sua importância: quanto tempo, dinheiro e energia investimos em projetos de interesse coletivo? O ponto é outro. Trata-se de questionar sobre a qualidade da nossa dedicação e dos efeitos produzidos: se a nossa contribuição à sociedade está informada pelas melhores práticas, se estamos conseguindo contribuir com nossas melhores aptidões, se estamos enfrentando as causas dos problemas, se nossa ajuda é estímulo à autonomia ou à dependência.

Sendo tão decisiva para o enfrentamento das injustiças e desigualdades sociais, a disposição pessoal de contribuir com o coletivo merece ser mais difundida, mais promovida, mais ensinada às novas gerações. É possível fazer muito mais, em todas as idades e em todas as situações de vida.

Não é uma utopia. Peço licença para mencionar uma memória de infância, convicto de que cada um tem também exemplos similares a mencionar sobre sua própria família. Cresci vendo meus avós maternos, Celina e Orlando Travancas, participarem ativa e constantemente do Banco da Providência, organização beneficente carioca fundada por dom Hélder Câmara, que realiza a Feira da Providência, cujo lema (exposto nos memoráveis cartazes de Ziraldo) é, precisamente: ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar nem tão rico que não precise de nada.

Neste início de ano, pode ser oportuno questionarmo-nos. Onde investimos nosso tempo livre? Como podemos fazer mais? Como podemos transformar e melhorar a realidade social, política e econômica à nossa volta? Como podemos retribuir o muito que recebemos? O que devemos fazer para que, ao final do ano, possamos dizer muito honestamente para nós mesmos: fizemos tudo o que podíamos fazer, fizemos tudo o que éramos capazes de fazer?

Nos tempos atuais, há uma grande preocupação com a saúde mental. Entre outros aspectos, destaca-se o cuidado para que não nos exijamos demais, para que não sejamos muito duros com nós próprios. Há uma nova proposta de percepção sobre nossas capacidades e limitações, numa perspectiva de aceitação serena dos nossos limites. Tudo isso é muito positivo. De fato, todos temos um longo caminho de aprendizagem no respeito ao nosso possível, que é único e diferente de todos os demais. Preocupações imaginárias e comparações com outras trajetórias de vida podem ser sufocantes e contraproducentes. No entanto, nada disso nos pode privar de nos perguntarmos, de forma muito sincera: será que não estamos sendo muito condescendentes com nós próprios? Não podemos fazer mais ou, na verdade, o que não podemos, para nossa própria saúde mental, é continuar fazendo tão pouco? O que chamamos frequentemente de cansaço (como desculpa para não fazermos mais) não é, na realidade, um desânimo por fazermos tão aquém das nossas possibilidades?

Há muito a fazer, a transformar, a construir, a manter, a fortalecer. Há muitas boas iniciativas em funcionamento precisando de braços. Há muitas carências necessitando de atenção. Além disso, a inquietação por servir mais à coletividade não é necessariamente um questionamento sobre mudar de atividade, incorporar novos projetos ou assumir novas obrigações. É também, de forma muito prática, avaliarmos e aperfeiçoarmos o modo como realizamos o nosso trabalho profissional. Todas as profissões têm uma profunda dimensão de serviço à coletividade. Sendo a atividade a que habitualmente dedicamos mais tempo, é em nossa profissão – no cuidado com que a realizamos – em que muitas vezes podemos deixar nossa melhor contribuição.

 

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